Leia a crítica de “Carter”, novidade da semana na Netflix.
Sinopse: Um homem acorda sem memória. Orientado por uma voz misteriosa vinda de um dispositivo em seu ouvido, ele parte em uma perigosa missão de resgate.
Direção: Byung-gil Jung
Título Original: Carter | 카터 (2022)
Gênero: Ação
Duração: 2h12min
País: Coreia do Sul
John Doe da Carnificina
Em uma semana de movimentações e notícias sobre a HBO Max, abrindo discussões importantes sobre o futuro da produção e distribuição audiovisual norte-americana, o exercício de acompanhar as novidades em profusão da Netflix foi um pouco menos frustrante. Culpa do longa-metragem sul-coreano “Carter“, dirigindo por Byung-gil Jung – também em cartaz no Star+ pelo elogiado “A Vilã” (2017). Simulando um plano-sequência para narrar a missão em tempo real do protagonista, o cineasta incorpora elementos intercambiados de clássicas histórias do cinema do Oriente e do Ocidente.
O resultado final pode ser desgastante para uma boa parte do público, cada vez mais acostumado a dividir atenção entre o filme e outra tela – ou pouco se importando com eventuais perdas de informação e imagens durante a trama. O diretor evoca uma tradição de thriller que leva a ação ao extremo, ocupando quase a totalidade do tempo da obra. Uma tendência que já observamos em outros lançamentos dos streamings. Quase todos eles muito criticados pela plateia pouco disposta a sair da zona de conforto.
Em “Carter” seria exagero dizer que há qualquer transgressão. Existem, sim, inúmeras referências que tornam a experiência de assisti-lo mais prazerosa. A ideia de que estamos limitados na linha temporal é diametralmente oposta à forma nada engessada com a qual Jung conta sua história. Carter Lee (Joo Won) é um homem que acorda nu em uma cama, abordado por agentes da CIA. No chão do quarto, um rastro de sangue. Na sua cabeça, a memória perdida. Na TV, as notícias de que o vírus da ZDC resulta em grande número de mortes nas Coréias do Norte e do Sul, ao ponto de um cessar-fogo, na esperança de encontrar uma vacina que salve milhares de vida, ser testemunhado.
Não há por parte do longa-metragem a exploração das figuras zumbizescas dos doentes. Um dos sintomas do ZDC é alterar o comportamento dos infectados, que começam a parecer com animais raivosos. O foco aqui é assistir a trajetória do desmemoriado, em argumento parecido com “A Identidade Bourne” (2002) e do seriado “John Doe” (2002-2003), abandonado pela Fox após uma temporada. A diferença é que Carter é uma maquina de matar ainda mais impressionante.
Enquanto estilo, os desafios da simulação do plano-sequência encontram rumos muito interessantes. Até mesmo a revelação inicial, que transforma o acompanhamento aos agentes da CIA (como se a câmera operasse pela perspectiva de um deles) em um drone desgovernado que atingirá espaços imprevisíveis, chama a atenção. Jung reproduz a lógica gameficada, que há muito tempo já se tornou filão no cinema comercial. Aqui ele abandona qualquer fragmento verossímil, o que é ótimo, permitindo que o mergulho pela estética de um RPG violento seja profundo.
O protagonista terá como missão escoltar Ha-na (Kim Bo-Min), filha de um pesquisador que parece ter encontrado a cura para o vírus. Uma abordagem dentro de uma distopia que dialoga com “Filhos da Esperança” (2006), outra obra que usa, por vezes, longas sequências para ampliar a ação. Carter será direcionado por uma voz em seu ouvido, a serviço da Inteligência norte-coreana, quase reproduzindo a ideia de Narrador de um RPG ou de um líder de ação de um jogo de videogame em primeira pessoa, mas sem essa limitação imagética específica.
Com isso, saíamos da abordagem inicial para uma longa cena de luta em uma sauna. Carter Lee repete a ideia de “exército de um homem só” com a destreza de um açougueiro. Nos efeitos e na montagem, aproximações extremas com o solo, passagens sobre fogo e fumaça, típicas da linguagem gameficada. A violência também é explorada ao extremo, com direito à piscina mudando de cor de tanto sangue jorrando. Nos diálogos com o fazer audiovisual, encontramos paralelos desde clássicos filmes de kung fu, ao ciclo do wuxia moderno que desafia a Física como em “O Tigre e o Dragão” (2000), passando até pelo registro found footage quando o desenvolvimento da cena permite. Sem contar, claro, de naturais referências tarantinescas, que já consistem em uma mistura de referências, porém mais assimilada pelos espectadores da plataforma.
Há espaço, ainda, para um dilema do personagem, que inicia o segundo terço do filme na dúvida sobre o respeito cego às ordens que lhe são dadas ou a tentativa de resgatar sua real identidade. Aos poucos, “Carter” pode se tornar uma maratona que te deixa extasiado quem gosta de respiros em uma narrativa de ação. Para a mente gameficiada de outros, será diversão pura. Aqueles que lapidaram seu gosto pela ficção comercial a partir da famosa “mentirada”, terá assunto para algumas semanas. No ápice do longa-metragem, saímos de uma imensa luta no ar na qual o protagonista precisa proteger a menina e seu paraquedas enquanto briga com o oponente, direto para uma perseguição de carros a um caminhão cheio de porcos.
Quando centenas de corpos de infectados de ZDC são dispensados em uma vala, o público já não consegue mais se sensibilizar. São duas horas de mortes com violências de toda a sorte, socos, tiros e explosões até não poder mais. Enquanto ritmo, Byung-gil Jung encontra uma fórmula para manter a sequência até quando abre o terço final, no que seria um pós-missão, com um flashback. Um trabalho tão inspirado que me convenceu a deixar algum lançamento da semana de lado e fazer uma sessão dupla com ” A Vilã”. Para quem pisca muito o olho, “Carter” já pode ser um exercício difícil de fruição. Para aqueles que gostam de fazer da segunda tela uma assistente durante o filme, pode soar como confuso, cansativo ou até mesmo intragável.
Veja o Trailer: