Sinopse: Em 1982, a praia do Arpoador, no Rio de Janeiro, recebeu a primeira “encarnação” do Circo Voador, um espaço para artistas de diversas vertentes mostrarem sua arte para o público. Meses depois, o Circo pousou na Lapa, bairro mais boêmio da cidade. Hoje, mais de três décadas depois, o espaço se tornou referência cultural no país. Este documentário dirigido por Tainá Menezes conta com depoimentos de artistas como Gilberto Gil, Lobão, Evandro Mesquita e mais de 50 personalidades que fizeram parte da história do Circo Voador.
Direção: Tainá Menezes
Título Original: Circo Voador – A Nave (2013)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 34min
País: Brasil
Ovelha Inabalável
A noite de domingo, penúltimo dia da 16ª CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, teve início com uma volta sem sair do lugar. Nesta nova configuração de espaço-tempo, potencializada em um festival online, me vejo na cidade histórica de Minas Gerais lembrando os tempos e transformações de um Rio de Janeiro – no qual estou fisicamente. Com direção de Tainá Menezes, pesquisa de Amanda Nunes e Ruy Gardnier e utilização do próprio acervo deste patrimônio cultural carioca, “Circo Voador – A Nave” participa da Mostra Preservação como mais uma ponte com a realidade. Mesmo com um corte final que já soa datado, encerrando sua produção no início da década passada, o espectador que guardar relação pessoal com o espaço será capaz de preencher as suas lacunas com memórias.
O acervo do Circo Voador vem sendo utilizado em outras produções, sendo uma delas “Os Quatro Paralamas“, pelo olhar da TV Zero, outro núcleo de criação fundamental para registro de uma época que começa com a reabertura política da ditadura militar e se estende até hoje. Pessoalmente, não era nascido para viver a fase do Arpoador e o início do que seria a revitalização da Lapa, no Centro – e chama atenção nos primeiros minutos do documentário o que conseguimos ver no entorno do bairro boêmio e o quanto houve empenho na área a partir do sucesso quando da reabertura da casa, aliada à Fundição Progresso. Também assisti de longe a pulsante renovação noventista, ainda muito pequeno para participar das rodas em apresentações do Planet Hemp, O Rappa e a formação original da Nação Zumbi com Chico Science.
Meu Circo Voador foi o do indie rock, da primeira oportunidade de assistir ao Franz Ferdinand quando eles foram banda de abertura da turnê do U2. Isso para aqueles que dependiam da imposição das gravadoras nas programações do rádio, ainda não tinham se libertado pelo consumo desenfreado de MP3. Minha geração foi o reflexo daquele espaço como algo desprovido de amarras normativas, do entendimento da expressão da juventude como algo político – e, por tabela, em um ponto de cultura dos mais especiais e divertidos. Os que seguiram a mim tiveram a oportunidade de aproveitar um Brasil economicamente mais forte e pautar um pouco a programação do Circo nas primeiras experiências de financiamento coletivo para trazer artistas para cá.
De forma linear, “Circo Voador – A Nave” se encerra com a despedida dos palcos de Rita Lee. Ela canta que uma hora a ovelha negra vai sumir de vez, mas o Circo parece uma ovelha inabalável. Sofreu pelos desmandos políticos de César Maia, moralmente ofendido pela retaliação dos frequentadores ao seu candidato-poste – que se tornaria o Prefeito Conde. Durante a pandemia de covid-19, a organização faz parte de um cinturão do bom senso e ignora os tais “protocolos” porque sabe que não há segurança para se manter aberto. E não há Circo Voador (nem Bar do Omar e não deveria existir Rio de Janeiro) sem aglomeração, sem os corpos suados se encontrando na estufa a qual a cidade se transforma de setembro a março – quem dera se fossem apenas os dias de janeiro cantados por Otto.
Prestigiamos a obra na programação da CineOP, mas deixaremos ela na íntegra ao final, disponível no canal oficial do Circo no YouTube. Um filme para ser revisto sempre que a saudade, tal qual agora estamos, do tempo em que podemos nos encontrar. Enquanto recorte histórico, não apenas a música se impõe, em apresentações sublimes no auge do sucesso de intérpretes como Cazuza, Tim Maia, Renato Russo e Cássia Eller. O olhar atento compreenderá as transformações que as gerações passaram e o impacto de um tempo em que pudemos sonhar um pouco mais. Há uma áurea inconsequente nos jovens que ocuparam aquele espaço em seus primeiros vinte anos. Do Camisa de Vênus a Raimundos, passando pelo Ratos de Porão, as expressões eram motivadas pelo toque de ausência de perspectiva de uma nação constantemente em crise.
Tom Zé fala na maneira como aquela casa aplaca os demônios de cada geração. As mais novas encontraram o caminho no indie rock, no resgate da junção de ritmos brasileiros (como a do último show que pude assistir lá, o encerramento da turnê de Johnny Hooker) ou no rap paulistano que faz do Circo um templo e de Criolo um messias – de verdade. Não dá para falar no passado e não há como não se envolver em um filme que mostra como a cronologia da música nacional parece mais um redemoinho. Não estava aqui para ouvir a Fluminense FM, mas cheguei a tempo a ver ressuscitar as zines vendidas perto da bilheteria.
A simbologia resta caracterizada e consolidada. “Circo Voador – A Nave” sedimenta a visão deste patrimônio, com a chancela do próprio – que produziu e preservou suas próprias memórias. Logo mais, ele volta. Encontrará artistas sedentos por subir de novo no palco. A plateia será uma nova geração perdida, tal qual aquela que ergue e depois segurou o Circo para que ele nunca mais voasse. E é essa geração perdida que ocupará este espaço, sem nada a perder.
Assista “Circo Voador – A Nave”:
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