Companheiro Presidente

Companheiro Presidente Crítica Filme Chileno Miguel Littín Pôster

Sinopse: Em 1971, o filósofo francês Régis Debray, célebre por ter participado junto a Che Guevara na incursão boliviana que custaria a vida a Che, chegou ao Chile para conhecer a experiência revolucionária. Nesse contexto, Em “Companheiro Presidente”, Debray entrevistou Salvador Allende sobre as características do processo e desafios, tanto ideológicos como políticos dessa experiência.
Direção: Miguel Littin
Título Original: Compañero Presidente
Gênero: Documentário
Duração: 47min
País: Chile

Companheiro Presidente Crítica Filme Chileno Miguel Littín Imagem

O Dilema das Conciliações

Coalização da esquerda elegendo um Presidente que, usando as difíceis amarras de um sistema político latino-americano, sob o avanço imperialista de um mundo dividido entre duas potências, tem permissão para colocar em prática reformas de base. Ao se deparar com determinações que colocam em risco a força do Capital, estrangeiro e especulativo, aplica-se um golpe seguido de um longo período de ditadura militar, em que as liberdades individuais são (ainda mais) restritas sob a desculpa do risco comunista. A história você conhece, só muda o nome, o local e – ligeiramente – a data. No média-metragem “Companheiro Presidente“, o diretor Miguel Littín trouxe a gênese intelectual de uma das mais famosas e mais trágicas: a do Chile de Salvador Allende.

Foi exibido ao lado de “O Chacal de Nahueltoro” no dia de abertura da Mostra de Cinema Latino Americano que revisita sua filmografia. Aqui a linguagem documental é escancarada pelo cineasta. Trata-se de um registro de uma conversa do recém-empossado líder do Executivo do país com o filósofo francês Régis Debray. O que se inicia como uma discussão sobre a capacidade da chegada ao poder mudar as pessoas, termina em um relato carregado de consciência sobre as limitações de atuação dentro da institucionalidade – uma abordagem que falamos há poucos dias, quando publicamos texto sobre o documentário romeno “Collective” (2019). Ao final do filme, o espectador se pergunta o quanto Allende colocou como discurso genuíno ou o quanto sua fala fazia parte da vã tentativa de conciliação de classes.

Por outro lado, não podemos negar que há uma chance de influência da própria realização de “Companheiro Presidente” sobre o biografado. Ao resgatar a origem do pensamento socialista e a experiência cubana, Debray e Allende parecem debater, sem chegar a discutir, sobre o dilema de não apostar na revolução. A montagem de  Carlos Piaggio, nome importante do Novo Cinema Chileno, também contribui para traçarmos uma linha de pensamento específica, que ultrapassa a experiência da filmagem e se reflete nas medidas econômicas tomadas pelo Presidente dias, semanas e meses depois.

Talvez a grande diferença entre a sociedade brasileira e de alguns vizinhos é o nascedouro da política do bem-estar social como premissa. A formação na Medicina, por exemplo, soa até hoje no Brasil como um choque. Vivemos em um país onde a elite ainda toma para si os ofícios mais nobres (com toda a complexidade do termo), tanto junto à Justiça quanto na saúde, para citar apenas dois. Aposta-se até hoje nos estudos de humanidades para fomentar debates sobre a atuação política. Isso, aliás, facilita a resistência a tais leituras, geralmente estereotipando e desautorizando lutas por ser do “pessoal de direitos humanos” ou então “do povo de Humanas que não quer trabalhar”.

Salvador Allende, então, é daqueles que vem da Medicina com um pensamento socialista muito bem sedimentado. Depois dessa caracterização, o filme nos traz o grande problema: a dependência de nações imperialistas, principalmente os Estados Unidos. A crise da Baía dos Porcos completava dez anos e Richard Nixon, que assumiu o Governo em 1969, não parecia muito disposto a transformar a América Latina em um quintal do seu Exército. A leitura política do chileno é a de que o próprio Fidel Castro, assim que se viu como líder instituído, não quis dar passos maiores do que a perna. Aqui fica uma grande dúvida: o quanto Allende acreditava que, vencido o desafio de conciliar classes em seu próprio território, conseguiria o Chile viver harmonicamente com os norte-americanos?

É quando Régis Debray começa a fazer uma provocação. Diz que esteve em Cuba há algumas semanas e lá viu revolução. No Chile, parecia testemunhar uma tentativa de onda reformista – talvez sob o risco de ser aquela marolinha que o Brasil viveu no início do século XXI, usando a poder de compra como muleta, mas que hoje traz tantas saudades. Nisso, a montagem de Piaggio traz um grande elemento para a narrativa: as imagens de Littín de discursos de Allende para multidões. Somos envolvidos em uma obra que não faz nenhuma questão de disfarçar a ideia de que o ritmo da estatização da economia e, principalmente, da reforma agrária, era lento demais para a urgência do proletariado.

Com isso, o documentário deixa para a parte final um viés mais reflexivo sobre a imagem do protagonista. Parece que ele sai do próprio corpo e o assiste dizer que a única opção para o povo era lutar. O que lhe segue, é História. Assistido poucas horas depois de um outrora improvável encontro de Lula com Reinaldo Azevedo, a sessão de “Companheiro Presidente” parece o chegada na areia de uma antiga garrafa jogada ao mar. Nela, um pergaminho diz que na América Latina a burguesia nunca aceitará a autodeterminação dos mais pobres, seja via reforma ou revolução. O passado diz que a conciliação é impossível, mas, no presente, esta parece ser única forma de combater genocidas.

Ouça “Compañero Presidente”, de Angel Parra:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *