Sinopse: Marcelo (Marcelo Di Souza) é um vaqueiro no interior do Brasil, que transita pelos diferentes espaços sertanejos de uma fazenda de gado e região, enquanto nutre sua paixão por rodeios.
Direção: Helvécio Marins Jr.
Título Original: Querência (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 30min
País: Brasil
Quando o Estranhamento é Apenas uma Premissa
“Querência“, de Helvécio Marins Jr., exibido no Festival de Berlim de 2019, pode não ser o melhor filme que você assistirá esse ano. Aliás, você ainda hierarquiza obras de arte? A pergunta é sincera.
É possível que não seja o longa-metragem que mais se destaque dentre aqueles assistidos no Festival Espaço Itaú Play, que no final de junho de 2020 trouxe pré-estreias de importantes lançamentos nacionais e internacionais adiados por conta da pandemia. Talvez nem desperte sua atenção para, nesse primeiro momento, te levar a consumi-lo.
Uma vez assistido, ainda há a barreira do estranhamento. O cineasta, em seu segundo longa como diretor (o primeiro foi “Girimunho” de 2011) pode trazer o Brasil que você não quer sair da sua bolha para olhar. A tendência, diante de uma sociedade tensionada como a atual, é aplicar o mesmo reducionismo que nos levou ao ponto em que estamos hoje, mesmo que menos tacanho. “Querência” nos transporta para uma das regiões de Minas Gerais banhadas pelo Rio Urucuia, com esse nome pelo tom avermelhado de suas águas no verão, quando os alagamentos trazem uma mistura de barro ao local. De origem indígena, não há na obra nenhuma representação dos povos originários. Ali o sertanejo já se estabeleceu há alguns séculos.
Marins Jr. segue caminhos difíceis para o espectador que entende que há certas normas que precisam ser aplicadas no processo de desconstrução. Fala de um povo conservador, que tem na cultura do rodeio e nas fazendas de gado parte fundamental de sua cultura e que não dá voz a ninguém que não seja um homem branco. Assistir “Querência” no meio de uma maratona de filmes carregados de cores, sabores e sensações, no conforto de um apartamento ovolactovegetariano no Rio de Janeiro (que já foi vegano, vegetariano, carnista e da fase “só um peixe de vez em quando”) é, de certa maneira, um desafio.
O início do longa-metragem traz uma construção estilizante da cultura do rodeio. É incômodo para quem tem sensibilidade à causa ver uma maneira de poetizar, de entender o boi como um inimigo dentro de uma arena. Porém, estamos diante de uma sociedade sertaneja que, em outro ambiente, demonstra certo carinho pelo animal. O público vê pelos olhos de Marcelo (Marcelo Di Souza) como é viver ali. Por isso, o diretor aos poucos foge dessa ideia de antagonismo e começa a transitar por vários espaços, denotando a riqueza cultural – mesmo que pouco representativa.
No leilão do boi, sai a vilania e entra o bicho como produto. A rotina do protagonista começa a ganhar terreno, mostrando que sua paixão pelo rodeio (e a figura do narrador), totalmente idealizada, é levada para o dia-a-dia. Aos poucos lavamos roupa no tanque de sua casa, ouvimos o hino nacional seguido da benção de Nossa Senhora Aparecida tradicional do início dos rodeios, o que traça uma identificação territorial. Há, em uma faceta mais documental, espaço até para um debate ético-político em determinada sequência. E há, de igual maneira, uma construção de narrativa que toca no assunto de gênero.
A única personagem feminina com fala não é mais moradora do local. Foi para uma cidade mais multicultural, onde fugiu de um mundo de privação tecnológica. Antes que o espectador identifique esses elementos, Helvécio Marins Jr. a pinta quase como uma donzela em cena. Da mesma maneira que ela chega, ela sai. Marcelo não se sente frustrado ou motivado por sair de sua terra, feliz com suas modas de viola e um discurso conservador quase unânime. No terço final, “Querência” tenta – mais uma vez – usar essa alegoria do antagonismo do boi. Nada que abale a convicção de que estamos diante de mais de uma obra do Cinema Brasileiro eficiente em sua proposta de trazer uma visão global, panorâmica sobre um recorte do Brasil.
Voltando às provocações iniciais, é possível que “Querência” te incomode por todos esses motivos expostos. Por se valer de um ambiente masculino e que ignora questões e debates tão latentes em nossa rotina. É um longa-metragem que não possui contrapontos, porque acredita que parte do público – habituado a consumir a produção nacional – será o próprio contraponto do filme. Antes de questionar as intenções de uma contemplação de um ambiente tão conservador, não esqueça que ele também dita os rumos do país – e que recepcioná-lo com olhar crítico e sem amarras é fundamental para não viver em um mundo de ilusão.
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