Dark | 1ª Temporada
Sinopse: Quatro famílias iniciam uma desesperada busca por respostas quando uma criança desaparece e um complexo mistério envolvendo três gerações começa a se revelar.
Criação: Baran Bo Odar e Jantje Friese
Título Original: Dark (1ª Temporada – 2017)
Gênero: Mistério
Duração: 496 minutos (10 episódios)
País: Alemanha
A Volta dos Perdidos
Atenção: a crítica da temporada da série a trata em sua integralidade, portanto, possui grandes spoilers da trama.
Se há algo que motiva a assistir a uma série é saber que ela já chegou ao final e você poderá sofrer com seu desfecho, sumiços e reaparições de personagens de uma vez só. “Dark | 1ª Temporada“, série alemã de grande sucesso da Netflix, segue o caminho trilhado pela plataforma. Universalista, mais para distopia fantástica do que crítica social – porém com todos os ingredientes – e um algoritmo que consegue condensar tudo o que parece ter dado certo na cultura pop dos últimos quarenta anos. Mesmo assim, surpreende pela incomum personalidade em sua construção narrativa e seus elementos – ao contrário de boa parte do audiovisual do serviço de streaming, que por vezes parece reciclar tudo o que pode.
Michael Kahnwald (Sebastian Rudolph) se mata em julho, mas deixa uma carta que só pode ser aberta em novembro, uma intrigante abertura no episódio inicial. Assim como em uma das mais potentes cenas de “Years and Years” (2019), todos os telefones tocam ao mesmo tempo em uma reunião. Com esses dois meios de comunicação – a correspondência escrita e o smartphone – a série pretende desenvolver suas tramas em três linhas temporais: 1953, 1986 e 2019. Três ciclos de trinta e três anos, em que episódios traumáticos acontecem na cidade alemã de Winden, que na vida real possuía menos de três mil habitantes no último censo.
Os criadores Baran Bo Odar e Jantje Friese parecem buscar referências sem as colocarem em destaque. Esse é o grande trunfo da qualidade de “Dark – 1ª Temporada”. Na dúvida sobre o que atirar no caldeirão, use a teoria do buraco da minhoca de Einstein, o paradoxo temporal popularizado em “Doctor Who” (1963-1989 e 2005-) e usado em nove a cada dez filmes de viagem no tempo, sem esquecer de cabanas no meio da floresta, trilhos abandonados de trem e o hotel quase falido com seus papéis de parede de cores berrantes. Use os conhecimentos e as vivências do público-alvo a favor do que se quer contar. Isso, sem dúvida, o programa faz muito bem.
Ao destrinchar elementos pré-concebidos, a série se permite criar um leque gigante de personagens – a maioria representada em duas ou três linhas temporais. A primeira temporada instigou, mas acabou gerando um filão de “explicadores de Dark” pelo excesso de histórias. Alguns fatores contribuem: a distância temporal (nossa) de lançamento das temporadas, o fato de muitos assistirem ao seriado pelo computador, telefone ou até mesmo a televisão e isso ser uma tarefa acompanhada de outras (ainda mais a juventude binge watching que vira a madrugada na qual novos episódios são lançados consumindo sem pausar) e as tramas se relacionarem dentro de núcleos familiares – tão próximos, confusos e criadores de atritos que, se fosse no Brasil, viveriam fazendo churrasco toda semana.
Assim como “De Volta para o Futuro” (1985) usou os anos 1950 para atrair uma geração saudosista à época de seu lançamento, em “Dark – 1ª Temporada” o fenômeno se repete, só que agora usando os anos 80 como objeto. A estética new wave não faria sentido no interior da Alemanha, mas os cabelos, a música e o Atari estão lá. Na ambientação de mistério, a atmosfera “Lost” (2004-2010) é explorada, até com uma porta que lembra sua escotilha no meio do mato. Na única referência direta a outras obras, esses dois fenômenos são mencionados. Acontece no episódio final, quando é dito que a primeira viagem no tempo – que ocorrerá em um quarto – não acontecerá em um DeLorean ou usando uma fumaça preta.
O que a série pretende é usar o conceito de existência única, afastando a ideia de que passado, presente e futuro existem de forma autônoma. Sem querer adentrar o terreno dominado por Roberta Mathias, mas os primeiros momentos do programa dão a entender que os ideias de psicomagia de Alejandro Jodorowsky serão utilizados. Mais de uma vez é reforçada essa ideia de unidade de existência. O antagonismo, ainda velado para se manter a aura de mistério, surge apenas no quarto episódio – quando a missão parece ser parar Noah (Mark Waschke), que sempre surge com vestes de padre. É quando o Fio de Ariadne (aplicação da lógica para se resolver um mesmo problema de diversas maneiras) e o Eterno Retorno de Nietzsche (ideia de que há um padrão cíclico do que ocorrerá no Universo, sendo as variáveis indiferentes) surgem como menções.
Essa maneira de atirar ideias para fazer o espectador brincar de Wikipédia foi inaugurada quando a forma de se consumir audiovisual em série se alterou. Desde que a internet possibilitou que a experiência de assistir a um episódio de série deixasse de ser pessoal e com hora marcada na grade de programação, tornou-se viável essa gincana cultural. E “Dark | 1ª Temporada” inaugura sua jornada fazendo isso o máximo que pode. Alia essa pretensão com uma situação que se repete à exaustão ao longo dos dez episódios das temporada inaugural. Sempre há um novo personagem alterando sua linha temporal. Ou seja, diversas vezes assistimos a uma parte considerável de algum episódio se valendo do estranhamento daquela pessoa com a Winden que não reconhece mais.
Quem se preocupa com ausência de verossimilhança pode se frustrar um pouco com momentos fundamentais da história. Ulrich Nielsen (Oliver Masucci), policial do distrito, é uma das peças centrais da série. Em 1986, quando era adolescente, ele foi acusado de violentar sua colega de escola e namorada. Em 2019 ele está casado com ela e a família tem três filhos. O mais jovem deles, Mikki (Daan Lennard Liebrenz), está sumido. Todavia, passados mais de trinta anos da traumática imputação de um crime grave (e sem ter a certeza de quem o denunciou), o policial de uma cidade de três mil habitantes nunca teve a curiosidade de pesquisar os arquivos com seu nome na delegacia. O faz, claro, de forma providencial para que a trama avance.
Nada disso compromete a experiência da série, mas se o seu hobby é apontar incongruências como esta, é possível que a diversão vá nesse sentido – porque há muita inocência no avançar da narrativa. Maquiadas pelas constantes viagens temporais, onde o irmão é ao mesmo tempo filho e outas confusões que só de pensar já embola nossa cabeça, os fatores incongruentes acabam sendo ainda mais relativizados. Em certo momento, era natural que o caminho a ser seguido fosse de promover algumas bagunças na linha temporal e a missão passar a ser mantê-la intacta, tal qual Marty McFly garantido que seus pais se conheçam enquanto sua mãe está apaixonada por ele. Porém, com todas essas pistas já mencionadas, de Einstein, Ariadne e Nietzsche, as possibilidades começam a escapar da zona da fantasia, aproximando o público de problemas mundanos mesmo diante de situações extremamente fantasiosas.
Apesar de equilibrar as referências nostálgicas, os conceitos familiarizados por um público nerd iniciado e um frescor que se mantém pela transição dos personagens pelas linhas, falta a “Dark – 1ª Temporada” uma aproximação com a raiz existencialista e até filosófica sedimentada por esses discursos. A opção por criar a cada novo episódio as chamadas cenas-âncoras, amarra da época em que precisava deixar uma pulga atrás da orelha para o espectador voltar na semana que vem, faz com que sempre terminemos pelo menos um passo atrás. Por sinal, a montagem é brilhante nesses momentos, com uma seleção de ótimas músicas que tornam aquele clipe final – antes do prólogo em que realmente algo acontece – bem mais natural do que grande parte dos seriados.
Escrevemos sobre essa temporada sem ter qualquer informação sobre as outras, mas não aproveitar as potencialidades que Ulrich e Noah podem tornar o trabalho dessa fase inicial em um desperdício. No risoto de ideias que os criadores Baran Bo Odar e Jantje Friese preparam, o que mais suscita questões é o debate entre “ser” e “se tornar”, inaugurado quando o policial vivido por Oliver Masucci sai de 2019 para tentar fazer justiça com as próprias mãos e consertar todo o mal vivido por Winden. Isso faz com que ele premedite um assassinato em 1953. Paradoxo imaginado por Philip K. Dick e adaptado para os cinemas em “Minority Report – A Nova Lei” (2002), em que a certeza do que o destino lhe separa acaba pautando o seu comportamento – fazendo com que, sem perceber, você conscientemente promova o que achou que era o acaso agindo.
Já o padre Noah concentra boa parte da intenção de ser complexo, sempre a partir da omissão de informações. Ele surge como um homem que não envelhece (tal qual Richard Alpert em “Lost”) e parece inaugurar uma tentativa de divisão entre bom e mau, Deus e diabo. O antagonismo é latente e o uso da entidade religiosa claramente praticando o que há de ruim é mais um elemento constante em obras do gênero. Já há, porém, uma aproximação com conceitos de pessoas de luz e de sombra – e podemos nos surpreender com isso se pensarmos em Jacob da mesma série. Aliás, faz dez anos que o programa acabou, mas continuamos enxergando “Lost” por todo o lado. A personagem Claudia (em 2019 vivida por Lisa Kreuzer), por exemplo, é uma senhora justiceira da floresta tal qual uma Danielle Rousseau na série criada por J.J. Abrams.
Fica a expectativa para que sejam trabalhadas algumas subtramas em especial. A construção de uma sociedade baseada em pequenos núcleos familiares rendeu bons momentos até aqui, mas ficamos carentes de adentrar a mente de personagens como Ines Kahnwald (Anne Ratte-Polle em 1986 e Angela Winkler em 2019). Uma enfermeira que adota um menino que insiste em dizer que veio do passado. Depois vê crescer seu neto e entende que ele é aquele menino. Um embate não apenas com o destino, que Jodorowsky explora tão bem em “Poesia sem Fim” (2016), quando se apresenta para suas versões crianças e adultos e – do alto de sua velhice – lhes passa mensagens de como a vida valeu a pena. Só que a materialização do destino a partir de Mikkel (Daan Lennard Liebrenz) é tratar da dor da morte sentida por antecipação, esperada com dia e hora marcada, tornando mais grave o sentimento de impotência quando se confirma.
Essas costuras interpessoais aos poucos começam a motivar os desejos e os impulsos de reescrever o presente, alterando o passado. Pouco antes de assistir ao episódio final, como um joguete do destino, tinha escrito em uma rede social como a sociedade de 2020, principalmente o Brasil no meio de uma pandemia em que a morte foi naturalizada, vem acentuado o sentimento de que somos peças em um tabuleiro. Tanto quem escolhe usar o mundo para si, ignorando as recomendações sanitárias, quanto os que estão há meses em uma vida de privação, cada vez mais usa o outro para suprir demandas específicas. Pois o episódio final verbaliza justamente essa proposição, mostrando que o mundo dos humanos sempre foi assim.
O programa, lançado em 2017, imagina o ano de 2019 como o fim de um ciclo, o que do lado de fora da tela parece ter ocorrido também. Encontra sua cena-âncora final em 2052, em que nosso estágio avançado de destruição coloca o espectador no ambiente cada vez mais presente tanto no mundo real quanto no ficcional: a distopia. Mais um elemento clássico vem à tona, apesar de – salvo as atitudes pretéritas pouco inteligentes dos personagens – bem fundamentadas e coerentes com a proposta da série. Por isso, podemos afirmar que “Dark | 1ª Temporada“, a despeito de se valer dos algoritmos e dos recortes de referências, prima por não exagerar e encontra seu tom, seu universo próprio. Só nos resta correr para ver a segunda temporada a tempo de não precisar sentar de frente para a TV com um glossário da série no colo.
Dark | 1ª Temporada