First Cow

First Cow

Sinopse: Cookie Figowitz (John Magaro) é um cozinheiro de um grupo de caçadores de peles que percorriam o território do Oregon na década de 1820. Ele encontra King-Lu (Orion Lee), um imigrante chinês também em busca e fortune no Oeste dos Estados Unidos. Eles se unem em um plano para enriquecer a partir da primeira vaca recém-chegada àquele território.
Direção: Kelly Reichardt
Título Original: First Cow (2020)
Gênero: Drama Histórico
Duração: 2h 2min
País: Estados Unidos

First Cow

As Desculpas de Quem Oprime

First Cow“, o mais novo filme dirigido por Kelly Reichardt ainda inédito no Brasil, representou a produtora A24 e os Estados Unidos no Festival de Berlim de 2020. Retoma a parceria da cineasta com Jonathan Raymond, roteirista de cinco dos últimos seis longas-metragens da diretora. Desta vez, o escritor de Oregon adapta seu próprio romance, “The Half-Life”, lançado em 2004 e também inédito no país.

Raymond ambienta a história no seu Estado de origem, alguns anos antes da chamada Corrida do Ouro Americana, que levou milhares de pessoas à Costa Oeste entre os anos de 1848 e 1855. Duas décadas antes, Cookie Figowitz (John Magaro) é um cozinheiro de um grupo de caçadores de peles – uma tentativa de enriquecer ao custo de muito trabalho, como a nação fundada na exploração máxima e no discurso meritocrático sempre gostou de se imaginar. Reichardt usa a tática de espelhamento narrativo, com duas grandes contemplações nos quinze minutos iniciais e nos finais. A primeira delas se pauta no contato com a natureza, com pequenas inserções dos personagens verbalizando as saudades do conforto de ter a comida pronta, comprada em alguma padaria.

Cookie, então, encontra King-Lu (Orion Lee), um imigrante chinês que ele confunde com indígena. Pelo menos a produção cinematográfica norte-americana entendeu que, além de questionar esses estereótipos, é fundamental aplicar a representatividade em cena. Essa sequência me lembrou muito como Marlon Brando, um homem branco, a troco do star system conseguiu interpretar desde Emiliano Zapata (“Viva Zapata“, de 1952); ao japonôes Sakini (“Casa de Chá do Luar de Agosto“, de 1956), passando por Napoleão Bonaparte (“Désirée, o Amor de Napoleão“, de 1954) – situação esdrúxula muito bem homenageada no personagem vivido por Robert Downey Jr. em “Trovão Tropical” (2008).

Afastada essa intervenção, “First Cow” faz refletir não apenas pela maneira desenfreada como o capital se fez valer de forma esmagadora nos Estados Unidos. Ao desenvolver sua trama a partir da chegada de uma vaca (a primeira, comprada por um dono de terra diretamente da Coroa Britânica), segue um interessante caminho sobre as motivações coloniais e as consequências de uma integração de povos que via sua aceleração inicial quando a Europa perdia de vez seus domínios no chamado novo continente.

A construção visual de Kelly Reichardt não difere de obras que se inserem no Oeste clássico. Há elementos muito marcantes, seja relacionado a cores ou aos figurinos – sem contar a presença quase exclusiva de figuras ligadas ao masculino. Chama a atenção a forma como ela insere a vaca na narrativa. Após uma montagem bem marcada, evoluindo vagarosamente suas intenções, ela destaca a chegada do animal. Sai toda a tonalidade mais escura, do meio do mato, entra uma paleta mais quente. É o único momento em que a obra alia essa ideia do solar com imagens que efetivamente se valem disso. Ao término dos momentos mais inspirados do filme, uma conversa na taberna sobre a presença daquele espécie estrangeira na localidade tem um curioso diálogo entre dois personagens. Um diz que “ali não é lugar para vacas“, no que o outro responde “nem para homens brancos“.

Porque a ampliação das garras eurocêntricas se deram sem qualquer respeito às identidades e deveria causar o mesmo estranhamento do que a presença uma vaca no meio daquele mato, nas Américas (onde não poderia estar espontaneamente, visto que sua origem é exclusiva de um rebanho que vagou pela Europa e Ásia há mais de dez mil anos). “Deus não os colocou aqui“, ele diz. Nem os homens brancos e nem as vacas. Esse sentido é ampliado quando King confronta Cookie sobre o valor das coisas. A herança cultural fez com que os norte-americanos aceitassem pagar muito mais por uma dose de whisky no bar do que boa parte da comida vital para sua sobrevivência. Com tempo para refletir sobre isso, questões como essas geram uma aliança entre os dois personagens, que passam a furtar leite produzido pela apelidada “First Cow” para aprimorar a comida por eles vendida.

Cansados de comer pão (só água e farinha), os bolos fritos da dupla começam a fazer sucesso – e chamam a atenção de alguns, que se perguntam o que tem naquela receita. Esse viés alimentício, trocadilhos à parte, é a cereja do bolo de um filme que parecia ter pouca substância para abraçar novas questões. Trata da colonização e da exploração territorial sob uma ótica do acesso a ingredientes, uma riqueza tão latente quanto o ouro que seria descoberto poucos anos depois. A dependência da caça de castores para obtenção de proteína animal e das frutas da época para um doce ser de framboesa ou de mirtilo, ganham infinitas possibilidades quando apenas uma vaca chega naquele espaço.

Esse pensamento crítico pode até permitir um entendimento sobre motivações exploratórias dos nossos antepassados. Não apenas territoriais, mas também de pessoas. Vendo que a limitação de acesso seria muito menor, a Humanidade aceitou esmagar os seus para ampliar o conforto geral. Não é isso que estamos passando agora, vendo o poder do capital nos intimando a manter a vida e o consumo dentro de um padrão de normalidade porque senão “a economia quebra” e “a fome mata mais do que o vírus”? Se hoje, com todo um histórico de crises na sociedade e amplo conhecimento de História, não são poucos os que compram essa ideia, quem naquele ambiente de fase final de genocídio indígena sacudiria os chefes de grupos de caçadores e perguntaria se eles tinham noção do que estavam fazendo?

Reichardt materializa esse expurgo ancestral em uma cena que inaugura os trinta minutos finais. Ali fica a sensação de que estamos diante do clímax de “First Cow” (apesar de toda uma inventividade de perseguição contemplativa, típica de um faroeste o seguir e fechar o espelhamento mencionado no início do texto). Em volta da vaca se reúnem um inglês, um chinês e um norte-americano branco. Ali eles decidem o destino da Humanidade no microcosmo de um vilarejo da Oregon do início do século XIX. Não há nativos daquela terra, porque para eles (tanto participantes, quanto excluídos) isso não importa. Os patrões, na verdade, só querem algo mais do que farinha e mirtilo em cima da mesa. Custe o que custar.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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