Chão

Chão

Sinopse: Sobre como o solo pode ser cultivado de maneira ecologicamente viável e as lutas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Desde 2015, uma área de terra é ocupada por um grupo de trabalhadores, que exige que seja redistribuída. O documentário considera imagens impressionantes para dar uma idéia da vida cotidiana em resistência, partes iguais de trabalho agrícola e ativismo político.
Direção: Camila Freitas
Título Original: Chão (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 50min
País: Brasil

Chão

Não Pode Comer o Pão, nem a Carne

A formação em Direito, mais do que alguns acessos fundantes a informações sempre complementadas com pesquisas, costuma surgir nas minhas impressões textuais sobre arte pela face da frustração. Em determinado momento, “Chão“, com o qual a cineasta Camila Freitas obtém constantes seleções a alguns dos principais festivais do mundo e do Brasil, traz novamente esta questão. Subvertendo qualquer ordem de análise, começamos por ela.

Ocorre durante mais um julgamento sobre a legalidade da Ocupação Leonir Orback (que quase foi objeto de reintegração de posse, suspensa ano passado). O típico caso em que a Justiça não corresponde aos anseios da população. Antes Usina Santa Helena, teve a propriedade questionada pelo Grupo Naoum. Um representante do que há de mais brasileiro na classe empresária: oligopolista, monocultural, ignorando qualquer função social de suas propriedades e, obviamente, insolvente. Devedora do Estado, que injeta dinheiro da população para que a elite brinque de empreendedorismo às nossas custas. Nesse ponto, a frustração pelo Direito bate forte porque sabemos que a corda será esticada a favor do lado mais forte o máximo possível. Para o rico, a dívida milionária (ou até mesmo bilionária) precisa transitar em julgado, infinitos recursos depois. De preferência, a tempo de qualquer bem da empresa ter evaporado ou “alaranjado”.

Para o cidadão, uma garrafa de Pinho Sol basta para alguns anos de cadeia. Atuar na advocacia é ser uma peça dentro deste jogo. Por vezes, a necessidade e até mesmo seu conhecimento podem te levar ao confronto com o que você acredita. Filmes como “Chão” tocam porque não sabemos, até que ponto, acaba a vilania do empresariado e entra a opressão ao trabalhador – sempre me transportando às relações dentro de companheiros de profissão inseridos neste sistema.

Só que este é apenas um ponto do documentário de Camila Freitas. Voltando ao fluxo natural, aquele em que a cineasta em conjunto com a dupla de montadores Fred Benevides e Marina Meliande pensaram a apresentação, chama a atenção o diálogo de abertura. Apresentado na programação da Mostra Lona 2020: Atravessamentos, é fácil entender porque o filme tem conquistado adeptos em todos os lugares onde é apresentado. Mesmo em meio a uma competitiva seleção de obras duras, com forte teor político e social, os primeiros minutos de “Chão” são memoráveis. Uma senhora conversa com seu neto sobre o destino dos quatro alqueires que lhe foram prometidos no processo de reforma agrária em curso na ocupação. Uma conversa que traz o planejamento sobre plantio e a divisão de espaço do terreno para abrigar vários animais. Ali testemunhamos o nascimento de uma propriedade familiar, em vias de ser extremamente produtiva.

Mas ela é, acima de tudo, familiar. Então adiciona-se a este planejamento muita cumplicidade, carinho e alegria. Uma vitalidade que aumenta a partir do desejo – e do sonho. Um exemplo de como é difícil não ter sua terra, seu chão. Quando tem, não ter a liberdade de escolher onde fincar suas raízes. Assim a cineasta começa uma jornada que traz muitos elementos vistos em outros documentários com o mesmo recorte. Sequências em que é mostrada a construção da resistência a partir de reuniões que misturam explicação, contextualização, debate e incentivo. Falamos disso em nossa análise de “Memórias de Izidora” (2016/2020). Uma comunidade que parece sempre viver atos preparatórios de defesa, porque sabe que o Estado ressurgirá a qualquer momento para te oprimir.

Chão” também rasga teorias engessadas sobre o poder da mídia, em dois momentos que se relacionam quase acidentalmente. O agropop global é representado em um comercial com a atriz Giovanna Antonelli, falando das maravilhas dos grandes produtores e seu maquinário e terras monstruosas. Uma criação editorial feita para um público-alvo ao mesmo tempo hegemônico, mas específico: aqueles que estão longe dali e entendem como propriedade as confortáveis casas e apartamentos distantes da rotina dos campos agrícolas. A relação se dá quando um senhor se recolhe em seus aposentos dentro do assentamento. Uma casa sem energia elétrica, em que a comunicação se dá por um rádio movido a pilha – que, além disso, possui um sinal péssimo onde se localiza sua cama. Não será a estrela da Globo que convencerá aquele homem de que a luta não vale a pena.

A riqueza de elementos e diálogos desta produção é tanta que foi possível falar muito sem citar o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Porém, ele é o grande protagonista do longa-metragem e não conseguiremos avançar em questões sociais sem falar dele. Antes mesmo que o documentário se encerrasse com informações importantes que inauguram os créditos finais, nossa reflexão já se encaminhava para um dos mais importantes movimentos sociais da História do Brasil. Em 2017, durante a Jornada Nacional de Luta pela Reforma Agrária, uma propriedade de Blairo Maggi, à época, Ministro da Agricultura do governo de Michel Temer, foi ocupada. As motivações e objetivos para isso são públicas. Esse momento também faz parte do filme.

Só que a Comunicação e a mídia roubam a cena novamente aqui. Camila Freitas, que não pode estar em todas as ocupações ao mesmo tempo e eternamente, captou a forma respeitosa com a qual a imprensa foi atendida naquele dia. Por sinal, para saber a verdade basta consumir as dezenas de obras lançadas anualmente que se inserem dentro da luta por terra – e imaginar o que acontece quando as situações não são filmadas. Mesmo respondendo às perguntas e argumentando o que deveria ser um debate saudável, o sensacionalismo é a tática usada. Ele sempre vence. O sensacionalismo que era primo distante do fascismo, mas agora batem uma bola no meio da tarde em qualquer canal que você sintonizar. Falarem para o espectador que a culpa é dele, que dá audiência porque prefere isso, é mentira (ou meia verdade). Se entrarmos pelo caminho dos motivos pelos quais muito do que você consome de notícias tem por objetivo agradar a elite, nosso texto não teria fim.

Essas escolhas de apresentação dentro do filme pluraliza sem segmentar. Vai de um diálogo familiar, quase ficcional de tão existencialista e poético, para o chorume da imprensa brasileira. Passa por reuniões, organizações e lutas. Há um momento-chave onde uma moça diz que deixou de lado a vida na cidade e se juntou ao MST no assentamento. Ali é possível entender a importância de uma comunidade. O sentimento de pertencimento pode ser muito mais indispensável do que o de segurança. Como um epílogo, faz uma nova propositura poética ao reservar os minutos finais para mostrar a grandeza do campo, o poder da terra – do chão.

Há um ditado popular, que podemos sempre problematizar o sexismo ou a misoginia, que recomenda que não nos relacionemos afetivamente com pessoas no ambiente de trabalho. Dizem que “onde se come o pão, não se come a carne”, como se fosse possível dividir em gavetas nossas interações e vivências. O título deste texto é para lembrar que a elite brasileira faz questão de comer o pão e a carne – e do primeiro, se possível não deixar sequer as migalhas. Concentra o lucro e socializa o prejuízo. É assim sempre, em todas as situações e esferas e tem preços altos a serem pagos se formando nesse 2020 distópico.

Chão” desenvolve de inúmeras maneiras como é urgente que esse alinhamento da população com os grandes empresários precisa mudar. Principalmente porque, a partir do trabalho do MST, é possível ter acessos a alimentos mais saudáveis. Sem exploração de trabalhador e sem agrotóxico. Portanto, é inconcebível pensar um país que insiste em criminalizar um movimento que coloca comida na sua mesa. Se seguir dessa forma, esta pátria nunca será livre.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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