Sinopse: Na contramão do imaginário socialmente estratificado em torno da epidemia da AIDS no Brasil, e da sorofobia cotidiana direcionada às pessoas que vivem com HIV, o documentário se lança no gesto de remodelar e se apropriar desses termos e imagens tão codificados, voltando-se para o olhar de sete artistas e um médico ativista sobre suas trajetórias, seus desejos e percepções. Junto às entrevistas que ancoram o filme, reverberando a provocação presente no título, reside a aposta nas formas e discursos artísticos como possibilidade de elaboração crítica e afirmação de vida no presente.
Direção: Fábio Leal e Gustavo Vinagre
Título Original: Deus tem AIDS (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 21min
País: Brasil
Desaprender a Rotular
De múltiplos e concomitantes projetos, nos últimos dois anos é quase impossível atravessar um festival brasileiro sem encontrar alguma obra dirigida e produzida por Gustavo Vinagre. Somente nas últimas semanas publicamos aqui críticas sobre “Desaprender a Dormir” (2021) e “Vil, Má” (2020). Em “Deus tem AIDS“, que abre a mostra Outros Olhares do 10º Olhar de Cinema, ele une forças com Fábio Leal em um documentário que dialoga com oito jovens soropositivos e suas leituras de si e de uma sociedade que, quarenta anos depois do surgimento da doença, insiste em tratar de forma discriminatória e homofóbica os portadores do vírus HIV.
Na entrevista oficial dos realizadores, que você assiste ao final do texto, eles confirmam que o longa-metragem é um projeto antigo. Iniciado em 2016, algumas imagens de arquivo seriam resgatadas no prólogo da obra. Entretanto, os cineastas preferem – na montagem de Beatriz Pomar e Quentin Delaroche – voltar para a forma como a mídia tratava a AIDS em seus primeiros anos. Isso aproxima ainda mais da abordagem desrotulante de “Prazer em Conhecer“, de Susanna Lira, assistida por nós no FestAruanda de 2020. A partir de chamadas de notícias de TV, em imagem que remonta ao período do VHS, toda sorte de estereótipo sobre a nova enfermidade era desfilado em rede nacional.
A geração que nasceu no início dos anos 1990 (e as que a seguiram) não fazem tanto a associação do HIV com a homo e a bissexualidade. Ou melhor, aqueles que combatem o preconceito enraizado com boas doses de informação. Essa ideia ainda é perpetuada – a ponto do atual Presidente da República ter esvaziado as programas e políticas de saúde pública de proteção e tratamento. Desse vírus e de outro, que surgiu já durante seu mandato e que Vinagre e Leal registram na outra ponta, a dos créditos finais.
Veja o Trailer:
Se em dezembro de 2020, a notícia era o atraso de licitações fazendo com que a realização de testes de HIV e hepatite C fossem suspensos no país, um ano antes chegamos ao ponto de campanha aberta pela abstinência sexual realizada pelo Ministério da Saúde. Acredito que não resta dúvidas que o fiapo de democracia e resistência ao fascismo ainda existe no Brasil por força de décadas de fortalecimento de instituições e políticas públicas – que foram atropeladas desde o golpe de 2016, quando “Deus tem AIDS” começou a ser produzido.
Enquanto Lira traz a contemporaneidade pelo olhar de um grupo LGBT libertário, mas com sua cota de privilégios, este documentário nos propõe outros tipos de atravessamentos. De uma jovem que herdou geneticamente o vírus, sendo soropositiva desde que nasceu, o assunto é a omissão. Prática que ela nunca procurou, mas que se revelou necessária para ter acolhimento inicial em uma sociedade contaminada pelo vírus do ódio. Já um rapaz fala de um desafio anterior dentro de sua realidade, a de superar a homofobia na comunidade negra.
Aqui os medicamentos PrEP / PEP não são uma pauta direta, mas circulamos por discursos sobre a necessidade de se afastar certos tabus. O principal deles – e o que se encontra com a filmografia dos realizadores – é a de a AIDS não é uma sentença condenatória. Não é uma “morte em vida”, como muitos acreditam e querem fazer os outros acreditarem que seja. O prazer, sob os mais variados aspectos, não é proibido e sua busca deveria ser naturalizada dentro das redes de auxílio.
Apesar do longa-metragem ser montado para trazer várias frentes de forma paralela, incluindo uma intervenção em praça pública que se propõe a atrair populares para um debate franco, Gustavo e Fábio parecem compreender que a trajetória do filme tem um objetivo que se revela no terço final. Quando um dos entrevistados fala das manifestações artísticas que usam o HIV como tema, a assexualidade é apontada como uma constante. Como se fosse uma regra ou não fizesse “sentido” nas representações. Uma outra forma de reproduzir preconceito, se colocando de forma neutra para agradar um grupo que nunca superará a leitura discriminatória se não for provocado.
É o mesmo núcleo desconstruído que reclama do nome do filme: “Deus tem AIDS“, ignorando o que está escancarado o tempo todo sobre dar voz aos marginalizados sob qualquer aspecto. Ao trazer a questão de colocar o gozo como patrimônio de qualquer indivíduo, as intervenções performáticas do filme ganham ainda mais sentido. E se aprofundam, até dialogarem com outras sequências inesquecíveis do cinema de Vinagre. No contraponto com a obra de Susanna já citada, trata-se de formulações diferentes.
E, no resultado final do primeiro representante brasileiro na Outros Olhares do Olhar de Cinema, um recado: nunca espere o tradicional do nosso audiovisual contemporâneo.
Assista à entrevista de Carla Italiano com Fábio Leal e Gustavo Vinagre sobre “Deus tem AIDS”: