Deus

Deus Mostra Ecofalante

Sinopse: Em um país no fim do mundo, chega a mais alta autoridade da Igreja Católica. O Papa vem trazer a palavra de Deus, mas o Chile o espera em meio à crise religiosa mais importante de sua história.
Direção: Christopher Murray, Josefina Buschmann e Israel Pimentel
Título Original: Dios (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 3min
País: Chile

Deus Mostra Ecofalante

A Dor do Papa

Deus“, dos trio de diretores Christopher Murray, Josefina Buschmann e Israel Pimentel é um ótimo exemplar para compreender algumas relações sociais do Chile, visto como muitos da atual equipe econômica do governo como modelo a ser seguido. Assim como a Suécia teria sido na forma de combater a pandemia de coronavírus. Aliás, no momento em que esse texto é escrito (24 de agosto) o latino-americanos estão perto de superar os nórdicos em morte por milhão de habitantes de covid-19 (570 a 575). Mas o Brasil flexibilizado vem logo atrás, com 540 de densidade – e subindo.

O ponto de partida do documentário, integrante da 9ª Mostra Ecofalante de Cinema, é uma visita do Papa Francisco a três cidades chilenas. Como sempre acontece quando o chefe da Igreja Católica e do Vaticano (uma das entidades mais poderosas e, por consequência, um do Estados mais poderosos do mundo) vai ao seu país, há uma mistura de orgulho com recrudescimento dos debates na sociedade. No caso do nossos quase-vizinhos da América do Sul, são dois os focos perseguidos pelo filme. O primeiro diz respeito à ascensão das religiões neo pentecostais na região, levando a questionamentos acerca dos esforços econômicos e estruturais para receber uma celebridade que não desperta o mesmo furor que outrora.

Há muito o Catolicismo perdeu densidade na América Latina, mesmo que ainda siga o maior pólo de fiéis vinculados ao Vaticano. O motivo principal, trazido algumas décadas por especialistas, é que a doutrina protestante – nos moldes pensados para nosso território – se coaduna com os anseios da população. A Teologia da Prosperidade cai como uma luva em uma área que convive com pequenas fases de progressos e longas crises econômicas. A esperança do sucesso se vincular ao ganho financeiro é uma mola propulsora muito forte, um ímã que atrai milhões de novos adeptos dessa forma alternativa de leitura do Evangelho. Sem contar que o argumento de quem os lidera, os pastores, é irrefutável: se não deu certo para você, a culpa é sua de não ter acreditado, orado ou doado o suficiente.

Além disso, o engessamento do Catolicismo foi levado ao limite. Uma religião que não se renovou e, por consequência, parou de atingir o objetivo principal de sua atividade: a religação, a conexão com a comunidade na qual se insere. Em “Deus” observamos alguns exemplos que tentam atualizar a linguagem, na tentativa de atrair fiéis mais novos. No Brasil isso ocorre há algum tempo, com iniciativas como a Canção Nova e o sucesso comercial do Padre Marcelo Rossi no final da década de 1990. A questão é que o Papa Francisco não parece muito disposto a liderar sua instituição como se estivéssemos em um jogo de ampliação de território. Ele tenta se voltar para dentro, em uma flagrante missão de recuperar a credibilidade da Igreja e ampliar sua capacidade de respeitoso e tolerante diálogo – principalmente com os não-convertidos.

Não à toa, ele disse “prefiro um ateu do que um cristão hipócrita“. O documentário nos deixa a sombra da presença do Papa, que não é personagem em nenhum momento, a não ser em imagens de noticiários ou de arquivos. Por outro lado, dá voz a representantes do povo Mapuche que, assim como os habitantes originários do Brasil, ainda luta pela conclusão de processos de remarcações de seus territórios no Chile. Com essas pessoas Francisco quer comungar e não perder o discurso, mas talvez tenha se frustrado um pouco com os compromissos institucionais do seu cargo.

Em 2013 estive em Buenos Aires e coincidentemente no dia em que o novo Arcebispo da cidade assumiria seu posto na Catedral, substituindo o novo Papa. Chamou a atenção a popularidade de Francisco ser maior até do que a de Lionel Messi, uma verdadeira esperança ao católico sul-americano registrada em lojas de souvenir e outdoors pelo centro turístico. Passados quase dez anos, podemos destacar os constantes pedidos de perdão pelos abusos sexuais e pedofilias de padres ao redor do mundo e o reconhecimento do genocídio dos povos originários da América Latina. Jorge Bergoglio sempre foi um humanista, mas seu poder reparador não atinge seus anseios, infelizmente. A Igreja Católica segue um rito de complexidade que ainda a engessa, ao tempo em que outras manifestações do Cristianismo se reinventam a cada dia, no ritmo da fugacidade das nossas relações.

O segundo ponto tratado em “Deus” é ainda mais forte e fundamental para quem deseja compreender a sociedade chilena. Está vinculado ao aborto e explica um pouco a onda feminista crescente naquele território. Um país pioneiro no neoliberalismo na América do Sul, que periga chegar ao status de opressão total de seu povo sem avançar de forma mínima em questões tão superadas em outros países. O Chile chegou a ser um dos poucos países onde o aborto era totalmente criminalizado, sem exceção. O regime ditatorial de Augusto Pinhochet abolia as hipóteses excepcionais em 1989 e assim permaneceu. Mesmo a ONU (Organização das Nações Unidas) recomendando que se descriminalizasse a prática em casos de estupro e incesto em 2004, a lei só foi aprovada em 2017.

Não sem antes o tribunal constitucional do país ser provocado a reanalisar a legislação por provocação dos políticos de direita. Um debate de um filme que, transmitido na semana em que uma criança de dez anos foi exposta por fanáticos religiosos que queriam impedir um aborto autorizado pela Justiça brasileira, veio a calhar. “Deus” usa como linha mestra a visita de um Papa argentino para falar da sociedade chilena. Mas funciona tal qual um espelho, refletindo a falência humanística a sociedade brasileira.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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