Dias

Dias Tsai Ming-Liang Filme Crítica Mostra SP Pôster

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Em “Dias”, Kang mora sozinho em uma casa grande. Através de uma fachada de vidro, ele olha para as copas das árvores açoitadas pelo vento e pela chuva. Sente uma dor estranha de origem desconhecida que mal consegue suportar e que se espalha por todo o seu corpo. Non vive em um pequeno apartamento em Bancoc, onde prepara metodicamente pratos tradicionais de sua aldeia natal. Quando Kang encontra Non em um quarto de hotel, os dois homens compartilham sua solidão. Ambos esquecem o lado duro da realidade por uma noite, e talvez até se aproximem da verdade, antes de retornarem ao seu cotidiano.
Direção: Tsai Ming-Liang
Título Original: 日子 | Days (2020)
Gênero: Drama
Duração: 2h 7min
País: Taiwan

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A Distopia do Encontro

Dias“, de Tsai Ming-Liang, foi um dos destaques da mostra competitiva do Festival de Berlim, agora apresentada na seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Uma obra que traz o cotidiano como uma série de eventos ritualísticos. Usando câmeras paradas, por vezes escondidas, dispensando em sua integralidade a verbalização, o longa-metragem traz, em pouco mais de duas horas de duração, a imersão reflexiva ideal para o nosso tempo. O cineasta dá peso ao silêncio para falar de cura.

Diversas formas de terapia e busca por sentido nos são apresentadas no filme. Kang (Kang-sheng Lee) pode até parecer aquele que protagonizará essa jornada, mas os anseios se manifestam antes pelas representações de Non (Anong Houngheuangsy). O processo de transformação do alimento é um deles. Morando em um apartamento pequeno, onde um objeto precisa ter múltiplas funções, não é exagero pensar que aquele balde que auxilia na lavagem das verduras não se esgote nesse fim. Assim como todas as manifestações que Ming-Liang constrói nas primeiras abordagens. O primeiro terço do longa-metragem usa a delimitação da residência para nos ambientar em suas vidas aparentemente solitárias e carregadas de dor.

Kang somatiza aquela angústia e precisa se curar fisicamente. O tipo de acupuntura conhecido como moxabustão não lhe parece surtir o efeito desejado. Desde o início o espectador sabe que aquelas vidas fatalmente se cruzarão. “Dias” refaz os passos de uma espécie narrativa que nunca se desgasta no cinema, a chamada “utopia do encontro”, porém de tal forma que nos encanta. São inúmeras formas de se abordar o vazio que acompanha a falta de palavras. Olhando por um janela como se estivesse em um ambiente estranho que usamos com um propósito; ou parados em meio a um comércio popular, território de transição diária. O centro urbano é explorado de cima a baixo, até que a distopia do encontro de Kang e Non se concretize.

É distópico porque as relações interpessoais cada vez mais se mostram imprevisíveis na forma e não no objet(iv)o. Uma realidade em que o outro possui funções específicas, em que não buscamos mais a imprevisibilidade nos contatos, nas ações. Ao resgatar a narrativa clássica em uma proposta de mundo que nos serve, o diretor nos faz pensar sobre as reais intenções das nossas movimentações. Queremos curas ou placebos? Viver ou experimentar? Ser ou estar? É equivocado pensar que todas essas perguntas alternativas podem ser aplicadas a todos os aspectos de nossa existência como um bloco. Contudo, não conseguimos mais ter controle sobre onde aplicar cada uma delas. É por isso que “Dias” alcança um tom de chamamento. Kang e Non querem encontrar meios de proteção, querem a plenitude de um dia só. Uma terapia pelo prazer, que dure o tempo de uma sessão de cinema.

Mesmo assim, os sentimentos nem sempre são criados, eles podem se criar. Na cumplicidade do silêncio, Tsai Ming-Liang pinça outro objeto clássico, uma caixinha de música, para materializar o afeto. Faz seus personagens transitarem por espaços universalistas, identificáveis para quem tem as noites da cidade na palma das mãos, quem já viveu a solidão de ter apenas a chuva a ser vista pela janela. “Dias” ultrapassa a já desgastada fórmula da fluidez das relações. Nos deixa lado a lado com seus protagonistas. Todos nós, deitados em nossas camas, sempre nos questionaremos o que – nesse plano de existência – será extraído de dias como esse.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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