Sinopse: Em “Do Outro Lado da Dor”, Marc era feliz vivendo às sombras do marido, o extravagante Oliver. Após a morte inesperada de Oliver, a vida de Marc virou de cabeça para baixo. Para enfrentar o luto, ele vai a Paris com seus melhores amigos, Sophie e Thomas, em uma viagem de autoconhecimento que revela verdades difíceis de encarar.
Direção: Dan Levy
Título Original: Good Grief (2023)
Gênero: Comédia | Drama | Romance
Duração: 1h 40min
País: EUA | Reino Unido
A Dor de Quem Fica
“Do Outro Lado da Dor”, drama norte-americano que estreou este mês no catálogo da Netflix, é capaz de provocar algumas reflexões acerca do luto – ou da finitude da nossa existência. A primeira que me chamou a atenção nos primeiros minutos da história de Marc (Dan Levy, também diretor e roteirista), viúvo de Oliver (Luke Evans), morto na saída de sua festa de aniversário próximo ao Natal, é sobre as pendências que deixamos quando morremos.
O próprio título em português do longa-metragem (no original a expressão em inglês “Good Grief”, algo como “minha nossa!”) já merece ser questionado. Afinal, com a morte, fica tudo para trás, inclusive os problemas ou as pontas soltas que deixamos no caminho. Ou seja, não há mais dor do lado de quem partiu. Todavia, aos poucos vamos descobrindo que, o talentoso pintor afastado de sua arte Marc, além da forte dor do luto, teria que lidar com algumas burocracias e questões financeiras envolvendo Oliver. Até que encontra outro lado da sua dor, originado pela face desconhecida daquele que amava.
Aliás, em alguns lugares o título aparece creditado de uma forma mais aceitável logicamente, como “O Outro Lado da Dor”. Porém, seguimos a forma apresentada pela própria Netflix em sua divulgação. A produção marca a estreia do canadense como diretor de longa-metragem e o início da parceria da plataforma de streaming com sua produtora, a Not a Real Production Company.
O amor da vida do protagonista era um bem sucedido escritor, que se despediu deste mundo sem escrever as partes finais de uma saga em adaptação para as telas. Inclusive, um exemplo de humor baseado no constrangimento em “Do Outro Lado da Dor” está na falta de noção da atriz principal dos filmes, lamentando no velório de Oliver sua partida antes de concluir a trama. Uma gag que ao mesmo tempo impulsiona a narrativa. Já a editora norte-americana exige que o pomposo adiantamento dado ao casal seja ressarcido, uma vez que os livros não serão entregues.
Diante de tantos desafios, passamos pelo primeiro momento de fuga de Marc. Ele resolve se dar um período de um ano para organizar os pensamentos e ir mais a fundo nas pendências que o amado deixou pelo caminho. Dentre elas, abrir a carta que o mesmo lhe entregou na fatídica noite do aniversário de Marc – e da morte de Oliver. A coisa muda de figura quando ele lê a carta e descobre que o marido não tinha mais intenção em manter o relacionamento. Ato contínuo, a agente do falecido informa que a editora também deixará de pagar o aluguel de um apartamento em Paris que ele nunca teve conhecimento.
Sendo assim, a trajetória de Marc muda do luto insuperável para uma mistura de saudade e busca pelas pontas soltas de Oliver, transformando sua dor. Afinal, ele passou a ser uma das pendências e não o cenário dos últimos momentos do amado. Levy, quatro vezes vencedor do Emmy de 2020 pela produção, direção, atuação e roteiro de “Schitt’s Creek” (2015-2020) constrói bem o prólogo, com a festa que terminará com a morte da personagem de Evans, uma peça típica de um conto de fadas trágico – para que toda a história seja uma desconstrução da idealização do protagonista.
A obra é pautada pela simplicidade da produção, claramente optando por cenas longas para ser feita em poucas diárias e cenários. Um exemplo é o final do prólogo já citado, com um exagerado dinamismo no acidente: ouvimos uma batida de carro e os convidados intuem que é o veículo de Oliver; já Marc tenta se aproximar do amado na esquina de casa e é impedido por paramédicos que já chegaram com caminhão e ambulância, uma licença inverossímil típica de quem deseja condensar a narrativa em pontos mais complexos de produção.
Superado isto (a quem se incomoda), o roteiro de Levy permite momentos de inspiração. No já citado velório de Oliver, seu pai aborda o próprio preconceito com o filho e faz um bonito discurso acerca do sucesso “apesar” do pai. Já na parte final do filme, Marc confessa estar “escolhendo a raiva para distrair a saudade”, uma forma sucinta de propor conclusões à trama sem apelar para a exposição dos diálogos.
Além disso, “Do Outro Lado da Dor” ainda expõe algumas consequências práticas de um relacionamento aberto pouco discutido entre o casal. Marc é mostrado como aquele que aceitou abrir a relação para fugir (mais uma vez) da opção de perder Oliver por inteiro. Todavia, as implicações sentimentais (e também jurídicas, que o filme em si deixa de lado em prol do drama) tornam a morte do marido um evento ainda mais traumático para a personagem.
Orbitando pelo protagonista temos Sophie (Ruth Negga) e Thomas (Himesh Patel), coadjuvantes com tramas paralelas pouco desenvolvidas, um dos pontos a se lamentar no longa-metragem. Principalmente porque se apresentam como figuras promissoras, com questões fundamentais sobre seus próprios relacionamentos – e em certo momento decepcionados com a ideia de que foram usados por Marc como peças de uma investigação quando ele decide ir a Paris refazer alguns passos de Oliver.
A emoção aqui passa longe da sensibilidade de outro lançamento em streaming das últimas semanas, “Alerta de Spoiler”. Porém, “Do Outro Lado da Dor” ganha na forma como promove uma mutação nas intenções de sua personagem principal. O luto vai se moldando na busca pela superação, virando um desafogo de raiva (que o mesmo disse que distraía a saudade), até o questionamento sobre culpa e responsabilização. No final, várias faces da fuga pelo inescapável barreira da morte – pela qual todos nós passamos até chegar a nossa vez de deixar as pontas soltas para quem fica.
Veja o trailer: