Leia a crítica de “Dom”, série brasileira que estreou no Amazon Prime Video.
Sinopse: Pedro Dom é um belo rapaz da classe média carioca que foi apresentado à cocaína na adolescência, colocando-o no caminho para se tornar o líder de uma gangue criminosa e dominou os tabloides cariocas no início dos anos 2000. Victor Dantas é um jovem que faz uma descoberta no fundo do mar, denuncia às autoridades e acaba ingressando no serviço de inteligência da polícia.
Criação: Breno Silveira
Direção: Breno Silveira e Vicente Kubrusly
Título Original: Dom | 1ª Temporada (2021)
Gênero: Crime | Drama | Violência
Duração: 7h 33min (dividido em oito episódios)
País: Brasil
Novas e Velhas Batalhas
No ano 2000, um videoclipe foi um marco na popularização do debate sobre o conceito de cidade partida no Rio de Janeiro. Dirigido por Breno Silveira, Paulo Lins e Katia Lund, “Minha Alma” da banda O Rappa ampliou o alcance das letras potentes de Marcelo Yuka, da voz de Marcelo Falcão e das representações de três realizadores cujas contribuições extrapolam qualquer conjunto de referências que este texto possa alcançar. Agora, Silveira lança, no Amazon Prime Video, em produção da Conspiração Filmes, a primeira temporada da série “Dom“. Ao contrário de boa parte das narrativas com as quais a obra dialoga, a ideia aqui é inverter a “conexão entre o morro e o asfalto” e usar duas gerações e dois períodos (não tão) distintos da história do país para fazer a contramão da ponte aérea, usando a classe média carioca como protagonista.
Antes de prosseguir, é importante não deixar pontas soltas na crítica – até porque o texto da equipe de roteiristas faz questão de não deixar. Para quem não sabe, Paulo Lins lança em 1997 o livro “Cidade de Deus“, gerado a partir de um estudo antropológico do ex-morador da comunidade. Cinco anos depois, no roteiro de Bráulio Mantovani e direção de Fernando Meirelles, fez gloriosa campanha pelos cinemas brasileiros e depois no mundo, com as quatro indicações ao Oscar de 2004. Já em 1999, Katia Lund dirige, ao lado de João Moreira Salles o documentário “Notícias de uma Guerra Particular“, filmado na favela Santa Marta – onde se passa boa parte da série. Duas produções responsáveis, não apenas para forjar a visão da sociedade sobre aqueles territórios, mas para formar as duas linguagens e as estéticas com o qual o cinema nacional abordou os temas – algo que falamos de forma rápida em nossa crítica sobre “Orfeu” (1999).
“Dom” se fixa neste mesmo período na linha do tempo em que acompanhamos o adolescente – e depois jovem – Pedro (Gabriel Leone). Filho de um policial civil afastado, ele é apresentado também em 1999, em um baile funk no Morro dos Tabajaras. Seu pai, Victor (Flávio Tolezani) será o narrador e protagonista da outra linha, que nos leva ao ano de 1970. A cada novo episódio, o seriado trará novos elementos para tornar as dinâmicas sociais envolvendo a sociedade carioca o pano de fundo. Dosando melhor a violência do que os longas-metragens da década 00, como o próprio “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite” (2007), o desenvolvimento das tramas torna certas abordagens bem menos atravessadas, já que há espaço para diluir as informações.
Algo que “Arcanjo Renegado“, outra ótima série brasileira, dirigida por Heitor Dhalia, também atinge. Aproveita-se as novas plataformas e a distribuição global e instantânea para aprimorar tais leituras. Sem deixar de se referenciar nas narrativas que moldaram esta visão de mundo, quem procura o caminho da ação e da perseguição criminal, não se decepcionará. Usa como fontes primárias os anos de pré-produção enquanto projeto de vida de Silveira, o livro escrito pelo verdadeiro Victor, Luis Victor Lombra Dantas, “O Beijo da Bruxa” e o versão romanceada lançada por Tony Bellotto, também intitulada “Dom”. Na entrevista coletiva da equipe, o cineasta confirmou que uma das motivações do pai de Pedro era a forma espetacularizada pela qual a vida de seu filho, Pedro Dom, era retratada.
Os trabalhos de Leone e Tolezani possuem uma interessante conexão. A montagem paralela nos leva a duas dimensões espaciais, porém o mote da mais recente usa o sumiço de Pedro como premissa. Isso torna os encontros em cena dos personagens algo raro em boa parte da série. Porém, há paralelos na trajetória dos dois, ainda mais na comparação com suas juventudes. Desinteressados pelo tradicionalismo, buscam um futuro bem mais desafiador do que seus pais desejam. Victor começa como mergulhador e contribuirá como uma espécie de agente infiltrado das forças policiais em uma investigação na costa da Bahia. Já Pedro quer a aventura e o dinheiro fácil dos golpes e acaba se envolvendo e depois liderando, uma gangue de criminosos. Porém, não há nas cenas esta troca direta, os comportamentos dos autores se pautam em uma mistura de projeção deles e orientação de Breno Silveira e Vicente Kubrusly, que dirige junto com ele os episódios.
A Conspiração consegue, com “Dom”, ampliar seu portfólio de boas séries, distribuídas pelos mais diversos serviços de streaming. Com dez indicações ao Emmy Internacional e um currículo que conta com “Sob Pressão” (Globo), “Magnífica 70” (HBO) e “1 Contra Todos” (Fox, agora Star Channel), é uma boa aposta para qualquer plataforma que deseja conteúdo de qualidade. É difícil não imaginar que novos prêmios chegarão a esta obra, que insere os arcos dramáticos, quebra a dinâmica da montagem para que o vínculo sentimental típico da consagrada linguagem folhetinesca ganhe espaço – e somente quando é necessário.
Se você não assistiu “Dom” e não quer entrar no terreno de spoliers, sugerimos que pare por aqui, relembrando o videoclipe de “Minha Alma” e retorne depois. Continue apenas se você já viu a primeira temporada completa – ou, se não liga para revelações sobre o enredo.
Assista “Minha Alma”, de O Rappa:
Há menos de um mês chegava na Globo Play outra série dramática que impressionou o público. “Onde Está Meu Coração” trazia a dependência química de uma jovem médica interpretada por Letícia Colin para discutir a toxicodependência e sua afetação junto à família. Formas de abordar o assunto e de propor (talvez impor) um tratamento que pode salvar a vida de um ente querido. No episódio um de “Dom” não há como evitar a comparação do comportamento de Victor, em comparação com Sofia – a mãe da protagonista da outra série, interpretada por Mariana Lima. Começamos a refletir os motivos pelos quais o pai se comporta daquela maneira com o filho. Esta é a primeira vez que a narrativa nos induz a ser reducionistas sobre determinada situação – para mais adiante mostrar que nada é tão simples como parece.
Imaginamos que aquele homem que vai ao Dona Marta buscar o filho sob efeito de cocaína no baile e – ao chegar em casa – grita, agride e algema o garoto na cama é “somente” reflexo de sua trajetória de vida como policial, membro do Esquadrão da Morte no período da ditadura militar. Até que um flashback nos leva a 1970 e mostra que ele era um mergulhador também podado pelo pai, de certa forma. Em pleno regime antidemocrático de exceção, ele encontra corpos desovados na Baía de Guanabara e, de forma inocente, leva às autoridades policiais. Ali ele inicia, sem querer e sem estar preparado, uma jornada de repressor infiltrado. Depois de um início dinamizado, sintético, avançado em duas frentes da história, o episódio dois é performático, em dois sentidos. Aos poucos as personagens Jasmin (Raquel Vilar) e Viviane (Isabella Santoni) vão ganhando espaço, o sexo enquanto elemento da narrativa se fixa e a série mostra que parte importante de sua ambientação se dará no momento-chave do estabelecimento do narcotráfico no Rio de Janeiro.
Mais adiante esta sensação se dilui, mas quando a favela dos anos 1970 aparece pela primeira vez, parecia que Breno Silveira resgataria um olhar exotizante sobre o território. Refletindo a chegada de Victor, que finge procurar uma mãe-de-santo na comunidade para descobrir como as drogas chegam ali, a câmera e as representações se aliam ao desconhecimento e certo deslumbramento do jovem. Aqui na Apostila de Cinema debatemos algumas vezes esta historiografia da cidade – e o roteiro, que parece bem consolidado na fundamentação histórica – joga bons elementos para trazer à tona várias questões. Ribeiro, chefe do tráfico interpretado por Fábio Lago (marcado pelo Baiano de “Tropa de Elite”) faz menção ao presídio de Ilha Grande, onde ele poderia ser levado junto aos presos políticos caso a polícia o capturasse.
Uma situação que já foi objeto de nossa crítica de “Doutor Castor” (2021), série documental da Globo Play. Os contraventores do jogo do bicho também eram levados para lá, uma mistura de referências que ampliou a conexão destes grupos de poder locais com suas comunidades. Por vezes, substituindo o Estado enquanto agente provedor e garantidor de direitos. Naquele período específico, a chegada da cocaína migrou de vez o comando daqueles territórios. Victor testemunha tudo isso e se envolve de uma forma que não seria tão fácil sair. Até porque as forças policiais nunca deixaram, em parte, de se alinhar com esses grupos.
Diante de duas tramas consolidadas, o episódio quatro nos leva para outro tipo de encantamento – incluindo um trecho, na linha do tempo de 1970, que usa “Com Mais de 30“, canção de Claudia como referência. Um clássico de uma geração que sofria as consequências das escolhas e visões ruins de seus pais. Nesta parte do desenvolvimento da série, tanto Pedro quanto Victor parecem viver exercícios de grandes consequências a partir das suas pequenas escolhas. Porém, as pessoas próximas acabam sendo afetadas. Em 2000, o pai se torna espião do próprio filho, com direito a uma agente infiltrada. Começa a se destacar a maturidade do trabalho de Gabriel Leone, que vai muito bem como líder de elenco. Com papeis de destaque em produções da Globo, principalmente seu Gustavo de “Os Dias Eram Assim” (2017), ele se consolida como um profissional que deve figurar cada vez mais em obras desta natureza, como seus ex-colegas de empresa Murilo Benício e Bruno Gagliasso.
“Dom“, ciente de que ainda tinha novas abordagens, conclui na metade da primeira temporada um dos arcos mais interessantes – envolvendo Lico (Ramon Francisco). Tínhamos aqui uma relação de irmandade capaz de salvar Pedro. Porém, sem os privilégios de um membro de classe média branca de Copacabana, a tragédia bate na porta daquele jovem bem antes do que ele imaginava. No episódio cinco parte da intensidade desta perda será justificada, iniciando aqui um expediente de mostrar motivações depois que as ações ocorreram. Aqui é o momento em que a série assume um tom bem mais dramático, incluindo uma tentativa de resolver o problema de dependência química do protagonista. Aqui merece destaque o fato de que, ter duas linhas do tempo, não obriga a edição a jogar com elas sempre, de forma didática. A caminhada de Victor lá na década de 1970 pode ter um período bem menor, caso seja necessário. Uma narrativa televisiva de núcleos usada de maneira inteligente, confiando no poder de envolvimento e concentração do próprio público.
Pode parecer exagero celebrar algo assim, mas é comum assistirmos produções que preferem mastigar, reiterar questões, como se fosse babá do espectador. Aqui, não. Por sinal, funciona tanto para quem possui referências históricas como para quem não possui. Um exemplo está no episódio seis, quando se esgotaram as alternativas de internação de Pedro. Em uma última cartada, Victor apostará no tratamento humanizado. Era 2001 e entrava em vigor a lei que instituiu a reforma psiquiátrica e decretou o fim dos manicômios (algo que há alguns anos corria risco de retrocesso, que se ampliou com o atual governo).
Isso incluía os dependentes químicos, que a partir do ano seguinte também teriam tratamento diferenciado quando a lei penal passou a distinguir usuários de traficantes (e em 2006 mudou de novo e confundiu ainda mais os juízes, que passaram a usar de forma subjetiva – e quase sempre discriminatória – essas classificações). Momentos que carregam de fidelidade a história por trás da série, mas que funcionam mesmo para quem não se preocupa com essa historiografia.
Há momentos em que Victor é mostrado ainda jovem, assim como Pedro bem mais novo. Pequenos flashbacks que tornam certas sequências quase universos paralelos, de certa harmonia na vida daquela família. Contudo, o grande elemento de origem do protagonista é revelado no início do episódio sete. “A dor é o que nos dá limite“, diz o médico quando conta para o pai de Dom que ele não desenvolveu em seu organismo as substâncias capazes de fazê-lo sentir as dores. Se chegamos até aqui perguntando o que faria ele demover a ideia de se esgotar enquanto pessoa, em uma maneira frenética de explorar sua existência, passamos a fixar a ideia de que não há esse limite. Quando a narrativa chega a este ponto, ela retoma a montagem dinâmica, expõe o frescor da juventude, aumenta novamente a voltagem e traz o sexo como ferramenta. Parecia que estávamos naquele último suspiro de uma vida louca.
Já na ocupação da cidade, Silveira nos traz Rio das Pedras e outro momento-chave do Rio de Janeiro. Se em 1970 a cocaína chegava, em 2000 a milícia se estabelecia. Primeiro como resistência ao narcotráfico, com receptividade até positiva por parte da classe média míope. Depois, compreendeu-se que estávamos diante de um poder paralelo ainda mais imprevisível. É em Rio das Pedras que parte da ação começa a se desenvolver. Já na história do jovem Victor, um elemento narrativo usado apenas uma vez traz o didatismo e a síntese na hora certa, para que a história avance. Em simulações de jornais da época, atravessamos a década mencionando a popularização da cocaína, o afundamento econômico que tornou insustentável a continuidade da ditadura militar e o surgimento dos barões das drogas na América Latina (com expressa menção a Pablo Escobar, protagonista das primeiras temporadas de “Narcos“, um marco no catálogo da concorrente, a Netflix).
O que une essas pontas são os mesmo argumentos que Paulo Lins com seus livros e estudos e Katia Lund com seus filmes utilizavam – e que a ala política progressista assumiu e até hoje não conseguiu se eleger na cidade (nem no Estado) com tal plataforma. Nunca se combateu o crime organizado com inteligência, sempre a violência imposta a uma comunidade abandonada pelo Poder Público foi a regra. Victor surge como uma das primeiras peças desta engrenagem, um agente que viu tudo de perto e a corporação, na hora de operacionalizar, escolheu a morte como resultado. Até hoje é assim e parece – pela motociata dos últimos dias – que estamos longe de enfrentar um debate profundo sobre problemas desta natureza.
Adicione a tudo isso um esquema complexo de corrupção, envolvendo muitos agentes da lei. É assim que o episódio oito, que fecha a primeira temporada, se inicia. A série toma uma decisão curiosa – e acertada. Pulveriza a ação logo de plano, reserva boa parte do derradeiro capítulo para articular a parte dramática e desmobilizar as relações problemáticas – dando munição para nos sentirmos satisfeitos com os arcos criados. Até que, nos fazendo lembrar que Pedro Dom não consegue sentir nada, reabre várias pontas e embaralha as cartas. Algo que só uma equipe e uma produtora consciente da obra poderosa que tem em mãos ousaria fazer.
Veja o Trailer de “Dom”:
Ficha Técnica dos Episódios
01 | 60min | Filho Não Vem com Manual
02 | 61min | Metamorfose
03 | 53min | Destino com D Maiúsculo
04 | 52min | De Quem é a Culpa?
05 | 50min | Rebordosa
06 | 53min | Sócios?
07 | 61min | Aprisionado
08 | 63min | Dando um Tempo
Finalmente uma serie que deixa a lacracao de lado.
Atores bons, script bom, fotografia, trilha sonora, sequencias de ação e drama. Enfim, uma grata surpresa da boa e velha arte cinematografica.