Doutor Castor

Doutor Castor Série Globoplay Crítica

Sinopse: Poderoso chefão do jogo do bicho, Castor de Andrade usou o futebol e o carnaval para legitimar sua imagem. Sedutor, carismático e violento, ele construiu um império de crimes no RJ
Direção: Marco Antonio Araujo
Título Original: Doutor Castor (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 4h 6min (4 episódios)

Doutor Castor Série Globoplay Crítica

As Viradas de uma Vida

Doutor Castor” foi a forma que a Rede Globo, cada vez mais confluindo suas plataformas, encontrou para fazer os entusiastas de Carnaval terem um conteúdo inédito para consumir no período. Mais do que isso, a minissérie de quatro episódios (que, somados, duram apenas um pouco mais do que um extenso longa-metragem) consolida a posição da empresa, agora refletida na GloboPlay, de usar seu acervo para produzir documentários em escala industrial. Uma tendência que a fez dominar os festivais de Gramado e É Tudo Verdade de 2020 e que, nas cada vez mais difíceis captações de recursos de forma independente, ganhará ainda mais força.

A obra é, sobretudo, um trabalho magnífico de montagem. Encontrar um tom para apresentar a complexidade de Castor de Andrade (1926-1997) usando reportagens da época (tanto da TV quanto de impressos) e depoimentos de uma parcela limitada dos personagens envolvidos – por questões óbvias – demanda uma proposta de narrativa. O que Marco Antonio Araujo (dirigido e co-roteirizando ao lado de Rodrigo Araújo) faz é uma importante inversão temporal aqui. O primeiro episódio, “Nos Tempos da Malandragem” traz um elemento que seria espalhado pelas outras três partes: uma tomada panorâmica de um dos espaços dominados por Castor. Após o prólogo que se vale de adjetivações múltiplas sobre o biografado, é o bairro de Bangu o território que inaugura a história.

Mesmo nessa busca por definições, a melhor palavra para descrever o protagonista é do jornalista Tino Marcos (perto do final do segundo episódio): magnético. Essa sensação só seria possível para o público que não viveu as desventuras do bicheiro caso sua primeira incursão pelo Bangu Atlético Clube na década de 1960 (interrompida com a publicação do AI-5 e sua primeira prisão) fosse deixada de lado para que a aura de encantamento pudesse ser transportada. O diretor, então, alcança essa proposta de traçar uma extensa linha que comporta tanto o Castor “familiar” quando o “perigoso” (para usarmos duas formas de descrevê-lo pelos depoentes).

O Rio de Janeiro é um terreno fértil de contradições e convivências dentro do que seriam antagonismos na sociedade. Por isso, quando lembram que Doutor Castor (que além de empresário-contraventor de sucesso era uma grande frasista) dizia que, no tempo da malandragem, tem que ter o otário, encontra-se o tom para mostrar que – na trajetória de supostas vitórias daquele personagem, muita gente ficaria pelo caminho. Ao escolher um período em que o protagonista caminhava para seu auge de popularidade, a série é eficiente ao pregar para não iniciados, tanto do Carnaval quanto do futebol. Até porque há uma geração que não viveu a cartolagem folclórica do esporte número um da nação e também não consegue dimensionar a força do jogo do bicho até meados da década de 1990.

Isso sem contar as escolas de samba, hoje fundamentais para o turismo carioca no período da folia – e que só foi legitimada pela classe média no período em que Castor de Andrade, Luizinho Drummond e Anísio Abraão David erguerem escolas médias como Mocidade, Imperatriz e Beija-Flor ao patamar de grandes, ao lado de tradicionais como Portela, Mangueira e Salgueiro. Nesse ambiente que, enquanto geração que se apaixona pelas passagens das comunidades na Marquês de Sapucaí, eu chegava ao final do primeiro episódio com a certeza de que “Doutor Castor” preencheria toda a minha madrugada de domingo de Carnaval.

Ouça “Sonhar com o Rei dá Leão”, samba-enredo da Beija-Flor de Nilópolis de 1976:

O samba-enredo mencionado acima, “Sonhar com o Rei dá Leão“, também é o título do segundo episódio. Pode parecer incoerente usar a escola da Baixada Fluminense como fio narrativo de uma obra totalmente vinculada a Bangu e Padre Miguel. Porém, isso não deixa de trazer uma grande característica de Castor de Andrade: a criação de elos – sem julgar seus meios e fins.

Depois de transpor o magnetismo do biografado para o piloto do programa, Marco Antonio Araujo traz uma sequência panorâmica do estádio do Maracanã e relembra o ano de 1985, que se iniciou com a possibilidade do time de futebol comandado por Castor receber uma herança milionária. Aos poucos ele se consolidava como mais um cartola folclórico (parecido com outro Doutor, o Eurico do Vasco da Gama – pouco mencionado) – inclusive com um episódio muito curioso envolvendo o futebol feminino em 1983 – e que talvez tirasse a categoria do amadorismo há quarenta anos se desse certo.

É curioso como, sem perder o foco da figura do contraventor, a minissérie traz questionamentos fundamentais sobre as conexões entre importantes elementos da cultura carioca. Eles estão ali, perpassando os depoimentos. Um exemplo é o de Mauro Galvão, atleta que chega ao Bangu naquele ano fundamental que levaria o time às finais dos campeonatos brasileiro e estadual. Ao se juntar a outros ex-atletas sobre as formas de pagamento de Castor, ele questiona: “e hoje? De onde vem o dinheiro?“. Aos poucos as presenças de Aloy Jupiara e Chico Otávio, autores do importante livro-reportagem “Os Porões da Contravenção” vão se impondo. Eles cumprem uma função mais didática. Porém, novamente a montagem afiada de “Doutor Castor” não deixa que suas falas tenham um ar de explicação – elas fluem naturalmente em conjunto com os outros elementos narrativos.

Trazendo a figura de Andrade próxima ao de Dom Corleone em “O Poderoso Chefão” (1972), nosso personagem vai se moldando e crescendo a partir da unificação de intenções. Se, em paralelo, ele alimenta esse status de mecenas de uma comunidade, por outro foge do enfrentamento com os que se assemelham – e isso ultrapassa o jogo do bicho. Em “Natal da Portela” (1988) mencionamos o desenvolvimento da área de Madureira a partir do dinheiro de um patronato. O mesmo Natal homenageado no samba-enredo mencionado no título, de 1976. O que Castor de Andrade, promove, entretanto, é a profissionalização de alguns espaços. Do bicho, com a chegada de uma rotina militar com a adição de chefes como Capitão Guimarães. No Carnaval, com a criação da LIESA. E a Globo estava pronta para revistar algumas histórias que lhe tocam diretamente.

Doutor Castor Série Globoplay Crítica

Quase como se emulasse o segundo filme da trilogia de Francis Ford Coppola, o episódio “Capo de Tutti Capi” confirma a inversão na linha temporal. Depois de nos mostrar o auge do Bangu em 1985 – em que um dos melhores elencos do país não se sagraria campeão – a minissérie volta para 1966, ano do último título. Esse rompimento da cronologia foi fundamental para que o espectador se envolvesse na narrativa.

Por sinal, um procedimento ainda mais difícil quando se monta um documentário – até porque parte dos depoimentos entrecruzam épocas distintas. O jogador Dé Aranha, por exemplo, é um elemento de edição que se sobressai. Não apenas pela forma de expressão, tipicamente carioca – direta e sintética – mas porque sua presença em mais de um ponto nessa linha do tempo o faz ser uma figura onipresente na tela. Assim como Michel Assef, advogado do Doutor Castor e do Clube de Regatas do Flamengo – outra prova de que instituições e pessoas se conectam de forma aparentemente incoerente no Rio de Janeiro.

Com uma panorâmica de Ilha Grande, onde o contraventor ficou por quatro meses “preso” por força do AI-5, Marco Antonio Araujo se permite transitar ainda mais pela história. Rememorando um era do Bangu que as vitórias não tinham a figura mítica de Castor eclipsando os feitos dos jogadores, há espaço para lembrar os títulos da Mocidade Independente de Padre Miguel. Todos com sambas-enredos inesquecíveis (1979, 1985, 1990 e 1991). Porém, para nossa memória musical escolhemos outra batida emblemática, mas que provoca um toque de sofrimento aos torcedores da escola. Até hoje um dos sambas mais cantados nos ensaios na quadra, “Sonhar não Custa Nada” era a chance do tricampeonato da escola em 1992 (feito conquistado por Portela, Mangueira, Beija-Flor, Império Serrano e Imperatriz) – eis que vem o choque e o vice para a Estácio de Sá, que nunca se repetiu.

Nessa segunda metade do programa, a Globo – enquanto uma dessas instituições cariocas – permite expor alguns de seus personagens emblemáticos. O maior deles é Boni, que se ergue como defensor das práticas do bicheiro, mostrando que as conexões da empresa com o Carnaval não surgem por acaso. Importante que nada aqui é apresentado unidemensionalmente – é um caso raro de produto gestado por alguém que se beneficia de certos comportamentos, mas os mostra de forma plural, ouvindo lados completamente distintos.

Surpreende, de certa maneira, a forma como a Globo vasculha seu acervo em prol de um conteúdo jornalístico isento. Porém, estamos diante de um conflito que nunca se encerrou dentro da platinada – e, confesso, o vejo de forma salutar: o setor de entretenimento abarcando uma multiplicidade de ideias e vozes, enquanto o noticiário reflete as ondas de pensamento da cúpula da companhia. Boni, pensando assim, não deixa de marcar posição enquanto homem forte dos anos 1970 a 1990 de um canal que não existe mais – e talvez por isso se debruce sobre si com mais naturalidade.

Ouça “Sonhar Não Custa Nada”, samba-enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel de 1992:

Até que o episódio final de “Doutor Castor”, intitulado “Todo Carnaval tem seu Fim“, chega e nos arrebata ainda mais no meio a vespeiros remexidos. A imagem panorâmica é a do Sambódromo e dois jornalistas aparecem pela primeira vez: Juca Kfouri, que entrevistou Castor para a Playboy em 1984 – e Ali Kamel, que o fez para a Veja em 1988. O segundo é diretor geral de jornalismo da Globo desde 2016 e vem dele (ao lado de Biscaia e Denise Frossard, membros do Ministério Público e juíza do caso que prenderia os chefões do jogo do bicho) as falas mais duras contra o protagonista.

Sintetizando o que representava a presença de um contraventor em um programa de entrevistas popular como o de Jô Soares, o depoimento de Kamel é fundamental para a reflexão sobre as mudanças da sociedade. Continuamos sendo a favor da espetacularização, ansiando por narrativas midiáticas, mas personagens como cartolas de futebol, patronos de escolas de samba e chefes de jogo do bicho não são mais aceitos. Um debate que desperta curiosidade e que não deveria se esgotar nas pouco mais de quatro horas que introduzem a vida de uma das figuras mais magnéticas do ramo.

Além dessa provocação, o episódio final conflagra o conflito jornalismo x entretenimento. Boni finalmente coloca para fora o que deve estar preso há duas décadas em sua garganta, desde que perdeu sua posição de poder. “Essa baboseira de politicamente correto“, ele diz. Ali fica nítido que estamos diante de um choque geracional e empresarial. Vale lembrar que vivemos uma época onde quase todo o conteúdo televisivo parece uma zona cinzenta (Datena faz jornalismo ou entretenimento? E Fátima Bernardes? Boa parte da produção é feita por pessoas chamadas de repórteres). Não sei até agora se soa como um recado a presença de Kamel no momento mais agudo do programa – e qual recado seria esse.

Porém, o que ainda eleva ainda mais o potencial da série é que ela incute no espectador a todo instante essa dúvida acerca das práticas do Doutor Castor – complexifica suas atitudes, fala da tipificação penal controversa, usa a figura de um advogado respeitado como Michel Assef para questionar fatos consumados – e usa uma parte de seus derradeiros minutos para materializar parte do que permanecia no campo das suspeitas. Antes de 2017, a Mocidade ainda daria um título ao seu patrono em 1996 com “Criador e Criatura”. No seu refrão, uma frase inesquecível, que parece ter sido pensada como saideira de uma figura lendária: “a mão que faz a bomba, faz o samba“. Mais um elemento pinçado com brilhantismo por uma obra que, sem dúvida, veio para ficar no imaginário desse devaneio que chamamos de Rio de Janeiro.

Veja o trailer de “Doutor Castor”:

Lista de Episódios:
Ep. 1: Nos Tempos da Malandragem (61min)
Ep. 2: Sonhar com o Rei Dá Leão (56min)
Ep. 3: Capo de Tutti Capi (59min)
Ep. 4: Todo Carnaval tem seu Fim (70min)

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

4 Comments

  1. Gostaria de saber o nome da música que toca no trailer de Doutor Castor.
    Desde já agradeço.

    1. Maia, demorei a responder porque tentei descobrir também. Mas, até o momento não encontrei. Inclusive, várias pessoas nas redes da GloboPlay perguntando a mesma coisa rs… Assim que descobrir atualizo aqui! Muito obrigado pelo comentário!

  2. Belo texto, Jorge. Só uma obs: Juca havia aparecido sim, antes do último episódio. Acho que só Ali Kamel estreou em ‘Todo carnaval tem seu fim’.

    1. Obrigado pelo comentário, Doriedson! Não me lembrava do Juca antes, mas como o ep. 2 focou no Bangu, agora resgatando acredito que ele tenha participado sim.

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