Doutor Gama | Entrevista

Jeferson De

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Silenciar, Jamais!

Se as quase duas horas de entrevista coletiva com equipe de produção e elenco de “Doutor Gama” fosse um filme, a melhor forma de começá-lo seria pelo final. Com importantes falas sobre a representatividade da obra e sobre a mediação popular de narrativas que levam o protagonismo negro para além da ancestralidade vinculada ao sofrimento, Jeferson De encerrou a conversa – quatro dias após o incêndio que atingiu galpão da Cinemateca Brasileira, localizado na Vila Leopoldina, Zona Oeste de São Paulo, dividindo sua apreensão por não saber se seu primeiro curta-metragem, realizado junto à Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) foi uma parte do legado perdido.

Obra que foi protagonizada por João Acaiabe, que faleceu em março deste ano – mais uma das milhares de vítimas de covid-19, nas múltiplas representações da forma como atual governo do Brasil está tratando nosso patrimônio e nosso povo.

O cineasta também revelou que “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) é um de seus filmes favoritos – e com o argumento de diálogo entre filmes, de proximidade de linguagens, que a produtora Cristiane Arenas o convenceu de que a melhor maneira de contar a história de Luiz Gama era a partir de três momentos de sua vida. Com isso, três atores o interpretariam, em uma difícil comunicação para além do que se vê nas telas.

Mostrando a integração entre as pessoas e o prazer que todos sentiram por dar luz a este projeto, estavam presentes na conversa, além de Jeferson, os atores Angelo Fernandes e César Mello (que vivem o protagonista as fases jovem e adulta), Mariana Nunes (intérprete de Claudina na fase adulta), Cristiane Arenas (representante da Buda Filmes) e Pedro Betti (representante da Paranoid). A coletiva contou ainda com a mediação da jornalista e crítica de cinema Flavia Guerra.

“Doutor Gama” estreia hoje nos cinemas brasileiros e faz parte da seleção especial da edição 2020 da mostra Première Brasil, dentro do Festival do Rio. Você pode ler a crítica da Apostila de Cinema clicando aqui.

Com as palavras, este grupo especial, que promove hoje o lançamento de “Doutor Gama“.


Doutor Gama | Entrevista

Doutor Gama | Entrevista | Angelo Fernandes
Angelo Fernandes, intérprete de Luiz Gama na fase jovem.

As Chegadas ao Projeto, Invisibilidades e Apagamentos

Jefferson De iniciou as resposta registrando a admiração imediata que teve pelo roteiro apresentado a ele e sua sócia de Buda Filmes, Cristiane Arenas, pela Paranoid em 2014. O cineasta conhecia Luiz Gama apenas pela escola e percebeu que era uma história que ele gostaria de contar, com traços de heroísmo na sua trajetória. Por ser uma obra de época, era fundamental a captação de recursos e a necessidade de associações, o que aconteceu com a Globo Filmes e a Elo Company, na produção e distribuição.

O diretor também chamou atenção para o fato do Cinema Brasileiro ainda não ter contado a história do abolicionista, em oposição às narrativas de Tiradentes ou da Independência. Assim que decidiu fazer, era importante que ele aplicasse sua marca enquanto cinema de autor.

O ator César Mello contou que Luiz Gama nunca esteva nem em seus livros didáticos. Ele conheceu sua história apenas quando soube que o filme seria produzido. Depois viria a participar dos testes e com seu envolvimento se impressionou por uma narrativa tão rica ser objeto de apagamento.

Angelo Fernandes foi outro que também nunca tinha ouvido falar em Luiz Gama. Conhecendo Jeferson ao fazer o teste para “M8: Quando a Morte Socorre a Vida“, ele recebeu um convite para o projeto sete meses depois. O ator destacou na trajetória do protagonista seu esforço e sucesso sem precedentes na história da advocacia. Mencionou como Joaquim Nabuco e José Bonifácio são lidos como figuras mais reconhecida para a causa abolicionista.

Mariana Nunes, que também chegou ao projeto por convite, disse que conheceu Luísa Mahin, mãe de Gama, lendo o livro “Um Defeito de Cor“, da escritora Ana Maria Gonçalves – sem saber mais da história de seu filho.

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Mariana Nunes
Mariana Nunes, intérprete de Claudina.

Os Produtores

Pedro Betti, da Paranoid, foi o próximo a se manifestar. Ele, que também é advogado, admitiu que também conhecia pouco da trajetória e contribuição do jurista. Ao receber o roteiro de Luiz Antonio observou que a história de Luiz Gama possui não apenas valor histórico, mas é igualmente interessante enquanto narrativa de superação. Depois de decidido o desenvolvimento do projeto, cada nova entrada foi fundamental: a associação Buda e Paranoid, a chegada da Globo, o edital da Sabesp, a formação do elenco, o encontro de Paraty como locação possível para retratar a São Paulo de meados do século XIX, depois a formação da equipe de produção – totalizando oito anos de projeto.

Cristiane Arenas confirmou que, quando receberam o roteiro, perceberam logo que seria uma longa preparação. Com 150 páginas, ficava nítido que demandaria um projeto de proporções hollywoodianas. Portanto, seria necessário adaptações para se adequar à realidade brasileira de captação de recursos, o que levou a um grande número de reuniões para atingir um desenho de produção possível.

Já a busca por locações fez com que ela e Jeferson percorressem boa parte do Vale do Paraíba até chegar a Paraty – além de outros espaços, como Bananal e Cunha, que pudessem pluralizar os cenários com recursos otimizados. Isto porque a cidade de São Paulo também é uma personagem do filme, que não possui a mesma documentação histórica que o Rio de Janeiro, capital da época.

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O Desenvolvimento de uma História

A mediadora Flavia Guerra destacou um dos mais relevantes aspectos constitutivos da obra. Ao invés de uma biografia panorâmica, “Doutor Gama” é direta e episódica. Com isso, evita a tentativa de abarcar um leque grande de acontecimentos e encontra um foco – o que permite que ele seja ainda mais simbólico.

Jeferson De, seguindo o que Arenas acabara de manifestar, disse que isso foi, em parte, consequência do extenso roteiro. Por sugestão de sua sócia, ancoraram a narrativa em três momentos-chaves – decididos também pelos diálogos possíveis com a realidade atual e seu senso crítico enquanto homem negro. São eles: sua venda pelo pai, sua liberdade e sua atuação como homem livre na advocacia.

Isso fez com que o diretor trabalhasse com algo que nunca fez na vida, filmar o mesmo personagem com três atores diferentes. Porém, o grande argumento da Cristiane foi o já mencionado diálogo com o filme de Barry Jenkins. Uma decisão que tornou o filme realizável.

Angelo Fernandes admite que a fase de Luiz Gama que ele interpreta é muito difícil, na qual inicia os questionamentos acerca de sua identidade e posição na sociedade – e passa a ser punido por isso. O fim da escravidão no Brasil deixou suas vítimas ainda desalentadas e, no longa-metragem, a representação de mudança e uma nova libertação vem a partir dos sapatos. No que Jeferson complementou e disse que, para ele, a libertação não provocava orgulho e sim insegurança.

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Nos paralelos com os acontecimentos recentes do país, Angelo, que disse ser cria do subúrbio carioca, lembrou o assassinato de Evaldo Rosa com mais de 80 tiros (e que permanece sem solução após mais de dois anos), o fuzilamento do menino de catorze anos, João Pedro, em São Gonçalo (também sem justiça passado mais de um ano), entre vários exemplos. Fatos que mostram como o período retratado na obra reverbera até hoje. Um passado que ele não viveu, mas a mãe de sua bisavó sim, de tão próximo que está na linha do tempo da História.

César Mello – formado em Letras e que quase se graduou em Direito – expressou a emoção de incorporar o abolicionista em momento tão simbólico, do julgamento em que a legítima defesa ganha forma como teoria. Ele atestou que seria impossível ser o protagonista e não explorar sua contribuição intelectual enquanto homem negro. Para ele, seu (e de Angelo e Pedro Guilherme) Luiz Gama é um homem negro no Cinema que reconstrói a imagem do homem negro que nos acostumamos a ver no Cinema. Ele não consegue ser descrito com um adjetivo ou subjetivo. É professor, jornalista, poeta (dono de um português muito rebuscado e responsável por quebrar paradigmas, sendo o primeiro a escrever sobre a mulher preta) – além de pai, marido, poliglota.

Ou seja, quando conseguimos entender todas as pessoas que ele é, vemos que ele capitaliza para si esta imagem múltipla do homem negro. O julgamento, quase como um novo filme dentro do filme, faz sentido não apenas cenograficamente quanto de representação e representatividade.

Jeferson De registrou que um filme que ele assistiu e reviu como preparação foi “O Grande Debate” (2007), pela maneira como Denzel Washington conduz as sequências de julgamento. Isto porque, ao mesmo tempo, era um aspecto importante vermos César como um Luiz Gama dentro da família, como pai e marido e depois no tribunal, este que é um espaço de interpretação – e que demanda a construção de um personagem do personagem. Destacou o conflito com Pedro, vivido por Erom Cordeiro, além da orientação de que nenhum dos três atores que viveram o protagonista sorrissem. O diretor não conseguia vislumbrar tal gesto naqueles momentos. Para ele, “Doutor Gama” é um filme sobre a dor.

Mariana Nunes admite que esta é a primeira produção de época em que ela não representa uma mulher escravizada – e que isso é parte desta reconstrução da imagem do homem negro no Cinema e na História. Apesar de falar, inevitavelmente, sobre escravidão e liberdade – a obra mostra subjetividades diferentes em época pré-abolição. Claudinha é uma mulher negra que já nasce livre e seus filhos também – e foi uma pessoa letrada, com oportunidades de estudar, bem diferente do estereótipo sempre buscado por outras produções.

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Doutor Gama | Entrevista | Cesar Mello
César Mello, intérprete de Luiz Gama na fase adulta.

Um Novo Cinema Brasileiro e Preto

A forma como “Doutor Gama” se apresenta não deixa dúvidas de que é parte de um processo. De um novo audiovisual nacional, mas também de um Cinema Preto Brasileiro, que toma para si as histórias envolvendo sua realidade e ancestralidade. Ciente disto, o Jeferson De falou da contribuição que este Cinema Preto pode dar ao Cinema Brasileiro. Diante destas reflexões, ele avisa que o longa-metragem é para ser não apenas visto, mas sentido – e ouvido.

Como os mais atentos ouvirão a flecha de Oxóssi em um momento-chave do filme. Os mais sensíveis perceberão a relevância da trilha sonora do compositor (cantor, instrumentista, poeta, pesquisador e professor) Tiganá Santana. São histórias e representações que chegam para ser percebidas.

Ao ser questionado sobre o legado de seu manifesto Dogma Feijoada e as implicações da construção do protagonista, o realizador lembrou que – desde o início da sua carreira – ele já se propunha a afastar personagens estereotipados e evitar os fortes traços de heroísmo e vilania. Luiz Gama, apesar de todos os feitos de um homem fundamental para a sociedade, ainda sim é mostrado sob uma perspectiva humanizada. Em um dos principais exemplos, a hesitação de tomar para si a causa que ele defende.

Naqueles paralelos com a contemporaneidade, o cineasta lembra que uma narrativa e uma trajetória ancorada em uma família negra era algo novo na sociedade de 1850 – mas também é no cinema de 2021. Isso pode dar a impressão de que estamos diante de um herói, como acontece com aqueles que quebram barreiras. E que os exemplos seguirão existindo – mencionado a Rebeca Andrade, ginasta brasileira que esta semana conquistou duas medalhas, de bronze e de ouro, nos Jogos Olímpicos de Tóquio.

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Dificuldades e Escolhas

César Mello, então, lembra que Luiz Gama não deixou de ser herói em sua realidade, pela sede de justiça – algo sempre dificultoso e dolorido. Mais um argumento para o “não riso” em sua expressividade. Na historiografia do povo negro, não há motivos para festas e celebrações, são conquistas sempre baseadas na luta.

Jeferson De estende a pesquisa histórica e o audiovisual específica para o projeto e chega a todos os homens e mulheres negras que ocupam as universidades e espaços acadêmicos com suas próprias pesquisas – na tentativa de evitar novos silenciamentos e apagamentos. Até por isso, o caso retratado no julgamento é a soma de vários, para que contemplasse várias questões trazidas à época.

Como opção de linguagem, o diretor não quis ceder espaço para a violência e exploração dos corpos – há sofrimento, mas estamos diante de uma narrativa edificante, de um intelectual. Jeferson, assim como grande parte da equipe de produção, estava falando de si ao tratar de seus antepassados, o que gera uma dor natural, com momentos difíceis de interpretações. Um Cinema Preto que não quer novas produções de imagens de sofrimento físico, não era essa apresentação que ele queria fazer para o Brasil pela figura de Luiz Gama.

Sobre as dificuldades no desenvolvimento da produção, foram mencionados exemplos que foram desde o figurino de época, feito por Mariana Nunes, até a energia carregada de Paraty, percebida por César Mello durante as diárias.

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Doutor Gama Crítica Filme Imagem

Os Legados

Questionamentos ainda mais duros surgiram na fase final da entrevista. O primeiro é sobre o que deve ser feito para que o Cinema Preto Brasileiro seja um processo e não apenas uma fase. Em uma comparação natural com a indústria norte-americana, Jeferson De falou da importância da ocupação total dos espaços – tanto na atuação quanto em direção, roteiro e produção. Para ele, a visibilidade à frente da câmera não foi o suficiente, se tornando fundamental, que cada vez mais, se vá para trás dela. Para ele, o momento é aproveitar e cobrar os players de streamings que, apesar de seus discursos sobre diversidade – em discursos moldados pelo viés da “responsabilidade social“, ainda engatinham sobre o assunto na prática.

Mariana Nunes considera que o filme aponta para um lugar bom, de recomeço, de estabelecimento. Acredita que as pessoas ainda vinculam diversidade com cota. Não pensam nos lugares de chefia e também de que, além da diversidade, é necessária a inclusão – para que o diverso exista plenamente, com lugar de fala e em diálogo com as outras expressões e representações – e “Doutor Gama” deve ser mais uma peça importante neste jogo.

César Mello resgata a história recente do Brasil e como o Cinema Negro fez parte da construção de resistência no período de ditadura institucionalizada no Brasil. Algo que precisa ser feito agora. Apesar da situação difícil não é tempo de parar, de “lamber feridas” e falar não apenas sobre o país que está dando errado, mas sobre o país que a gente quer ter, algo que o longa-metragem expressa bem. A hora é de continuar apontando e lutando para que movimentos sejam agregados e leis sejam mudadas, mas há outros aspectos, de um Brasil que a gente precisa e que não pode parar nas adversidades.

No encerramento, Jeferson De disse que, assim como em 1850, hoje também temos leis – mas será que temos justiça? Luiz Gama entendia como funcionava os mecanismos das instituições, sabia quem era seu oponente e estabelecia debates – sendo essa talvez uma das grandes contribuições suas e que ele espera que seja do filme.

Sobre a cooptação do discurso do abolicionista pela direita, como se ele fosse um liberal, o cineasta admite que foi, sim, uma preocupação do filme – e deixou para nós a célebre frase de Martin Luther King: “o que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons“.


Como mencionamos no início do texto, Jeferson De demonstrou ao final apreensão pela incerteza se a sua gênese enquanto cineasta virou cinzas no incêndio da Cinemateca Brasileira. Não apenas a história ligeiramente remota da cultura brasileira morreu na noite do dia 29 de julho – registros recentes, de realizadores no auge de suas carreiras, podem ter sumido diante dos seus olhos.

Porém, ele lembra que – apesar das tentativas de silenciamento, apagamento, unidas ao desmonte e à destruição, ele lança na mesma semana um filme do tamanho de “Doutor Gama“, com uma equipe que já provou que não deixará que se dê nenhum passo para trás.

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A Apostila de Cinema é uma iniciativa de promover o debate sobre o cinema e questões pertinentes ao mesmo levantando análises culturais, sociais e estéticas que consideramos centrais para o pensamento crítico da Sétima Arte Contemporânea.

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