Downton Abbey II: Uma Nova Era segue em cartaz nos cinemas. Leia a crítica!
Sinopse: Em “Downton Abbey II: Uma Nova Era”, uma grande jornada ao sul da França, os Crawleys buscam desvendar o mistério da villa recém-herdada da Condessa Viúva.
Direção: Simon Curtis
Título Original: Downton Abbey: A New Era (2022)
Gênero: Drama | História | Romance
Duração: 2h5min
País: Reino Unido | EUA
A Volta da Tradição
O último reencontro foi um sucesso e todos os nomes envolvidos em “Downton Abbey II: Uma Nova Era” tornaram ainda mais difícil o desenvolvimento de uma obra que destruísse o legado de fãs da série. Chegando aos cinemas brasileiros pela Universal, podemos dizer que o longa-metragem é, sim, um filme “de nicho”. Com a diferença de que este crítico sempre fez parte do nicho que acompanhou a trajetória da mansão no interior do Reino Unido na reta final do século XIX até sua chegada ao século XX. Depois de quase 26 meses de uma longa abstinência das salas de cinema, estava pronto para voltar à escuridão total e rever nomes e rostos conhecidos, auxiliando em um capítulo importante na retomada da antiga normalidade e a tradição de “ir ao Cinema”.
Quando escrevi sobre “Downton Abbey” (2019), falei que o leque de personagens e suas relações de poder são capazes de gerar diversos textos sobre a mesma obra. Também apontei elementos que faziam daquela produção uma series finale digna – apesar da original já ter sido o suficiente. Além disso, a ideia de que estamos diante de um “produto cinematográfico” quando assistimos os episódios fez dessa transposição audiovisual um caminho natural, bem recebido por seu público-alvo.
Ao começar “Downton Abbey II: Uma Nova Era” observamos que o diretor Simon Curtis tenta explorar um pouco mais do que a antiga fórmula dos capítulos da série e que mantiveram o primeiro longa-metragem em uma zona de conforto. Sai a viagem da câmera à meia altura pelos corredores da mansão e entra uma viagem de drone (claro, sempre tem que ter um drone). Ele nos leva para dentro de uma capela em Essex, onde Tom Branson (Allen Leech) está se casando novamente. Viúvo de uma das três filhas de Robert Crawley (Hugh Bonneville), ele é um dos personagens mais interessantes de toda a trajetória do programa. Muito pela capacidade que aquela família tem de, imbuída em seu tradicionalismo, testar suas convicções.
Talvez soe estranho que Tom protagonize um prólogo para ser, aparentemente, descartado em uma viagem de lua-de-mel. Ele volta no início do segundo ato, assim como os eixos da narrativa. O criador da série Julian Fellowes é creditado como único roteirista e desta vez ele exercita uma narrativa de duas frentes. Robert recebe a notícia de que um ricaço francês deixou uma linda casa de inverno no sul da França para sua mãe, Violet (Maggie Smith), após uma semana romântica esquecida há mais de cinquenta anos. A senhora, então, deseja transferir a propriedade para sua bisneta, filha de Tom e da saudosa Sybil (Jessica Brown Findlay, que saiu do show de forma traumática por apenas não desejar renovar seu contrato).
O segundo ato terá esse paralelismo narrativo: de um lado o sul da França começando a despontar como um balneário de verão e o restante da turma em Downton recebendo uma equipe de produção de cinema. Todavia, até que esses nós se desatem, o espectador se depara com alguns minutos de uma montagem mais frenética (do que o padrão do cânone do programa, claro). Cenas curtas, transitórias, de diálogos que precisam fazer a história andar o mais rápido possível. Sacrifica-se esse ato para colher os frutos mais na frente, é verdade. Porém, isso torna o início da experiência de “Downton Abbey II: Uma Nova Era” ironicamente bem mais “televisivo”, algo que a produção anterior nunca chegou perto.
Não sobra tanto tempo para inserir a crise na propriedade no contexto histórico. Estamos diante dos anos 1930, em um mundo prejudicado por uma crise econômica que sucedâneo de uma pandemia. Aliás, bem mais próximo de nossa realidade do que gostaríamos de estar. Se a relação entre patrões e empregados se estreitou muito desde o final do século XIX, agora qualquer resquício de idealização e heroísmo por trás da fidalguia caiu por terra. A exceção é o Sr. Carson (Jim Carter), que conserva uma fidelidade apaixonante. É dele a única resistência por receber o “povo de cinema” naquela casa nobríssima. Ele questiona, nos relembrando a trama do filme anterior, se não seria um sacrilégio essas pessoas sentarem na mesma cadeira na qual a Família Real sentou há poucos anos.
Todos os outros funcionários, principalmente os de meia-idade, veem nas estrelas de Cinema seus novos ídolos, suas metas de vida. Só que esses astros também estão em crise. Com a chegada do som, boa parte dos profissionais famosos por fazerem caras e bocas precisam se reinventar ou morrer. Fellows, então, cria uma nova relação triangular de vulnerabilidade. Se no longa-metragem de 2019 tínhamos os trabalhadores do Rei em oposição aos nossos personagens favoritos, em uma briga de egos, agora temos uma reestruturação das relações de poder a partir de uma nova ideia do que é ser lacaio.
Maggie Smith, mais uma vez, segura boa parte do humor inglês sóbrio e maravilhoso nas cenas principais. Sua Violet, já muito debilitada pela idade, ainda consegue dominar todas as cenas nas quais participa. O Tom de Allen Leech aparece bem mais à vontade com seus dilemas, entendendo que seu arco natural precisa dar conta de suas contradições. Ele foi de empregado à membro da família na época em que o amor entre classes sociais distintas era algo bem mais escandaloso. Depois, foi colocada à prova seu republicanismo quando precisou preparar a propriedade para a chegada da Família Real. Agora, imaginando como será a educação de sua filha para se adaptar a um mundo que precisa condenar tantos privilégios, recebe de bandeja uma herança nababesca.
Essa constante conflito vive também Lady Mary (Michelle Dockery) enquanto mulher. Esposa de um marido ausente, seja ele qual for. O primeiro, pai de sua filha, morreu em um acidente de carro (culpa do ator Dan Stevens, que quis abandonar a série acreditando que seria sucesso em Hollywood e deixou como legado apenas um trauma para a Presidenta Dilma Roussef). O segundo esposo está às voltas em corridas de rali, trazendo o carro como outro símbolo de uma sociedade moderna que se avizinha. Ao contrário do Cinema, esse ponto não é desenvolvido.
Aliás, a ampliação de Fellows é tanta, que algumas imagens em “Downton Abbey II: Uma Nova Era” parecem prejudicadas pelo corte final. Na tentativa de manter uma minutagem vista como razoável, além de uma celeridade incomum no primeiro ato, fica a impressão de que algumas subtramas ficaram com pontas soltas, mesmo com material filmado. A mais flagrante é aquela que trata da tentativa de emancipação, mesmo que não redentora, de Thomas Barrow (Robert James-Collier). Nada que faça desanimar os fãs do programa, que sairão da sessão com o doce sabor do reencontro na boca.
Talvez reclamem mais do que faltou do que daquilo que sobrou. Um exemplo é a perda de terreno de Anna (Joanne Froggatt) e John Bates (Brendan Coyle), um casal que sofreu muito para ser feliz nas temporadas intermediárias. Ou do coadjuvantismo de Lady Edith (Laura Carmichael), que rompeu com a ideia de que as mulheres da família não deveriam ir para a cidade trabalhar e se tornou uma colunista de jornal. Ao mesmo tempo, ficamos felizes com essa estabilidade em suas vidas. Nada impede que novos dramas se desenvolvam, afinal, a História anda e Downton ainda estará de pé com a chegada da Segunda Guerra Mundial.
A forma como o ato final se apresenta segue servindo a dois propósitos: uma ótima conclusão de trajetórias e resoluções que permitam que eles retornem para a sala escura em breve. Porém, o destaque mesmo é o clímax de “Downton Abbey II: Uma Nova Era“. Se estamos diante de uma estrutura de poder corrompida pela modernidade, que não comporta mais o distanciamento entre lacaios e fidalgos, a forma como a magia do Cinema se coloca de intermediária é espetacular. Só não subverte totalmente a lógica porque detentores de tantos privilégios jamais serviriam seus empregados – apesar de terem servido a Família Real.
Mas no Cinema, sempre há a chance de súditos virarem reis por um dia. E essa magia é ainda mais emocionante naquelas salas escuras que tanta saudade nos fizeram sentir. Há poucos dias da Apostila de Cinema completar dois anos, esse é o primeiro texto sobre um filme assistido em uma delas. Esperamos que sua magia – e a de Downton Abbey – ainda nos renda muito mais em breve.
Veja o Trailer:
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