Sinopse: À beira da rodovia Transbrasiliana, Edna vive em uma terra em ruínas, construída sobre massacres. Criada apenas pela mãe, ela experimenta, no corpo e nos corpos de seus descendentes, as marcas de uma guerra que nunca acabou: a guerra pela terra. Tecida a partir dos relatos e escritos de Edna no caderno que ela intitulou A História de Minha Vida, a narrativa híbrida transita entre real e imaginário, por guerrilhas, desaparecimentos e desmatamentos, mas também pela força de mulheres, rios e matas que insistem em sobreviver.
Direção: Eryk Rocha
Título Original: Edna (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 4min
País: Brasil
O Passado que Permanece
Confesso que deveria estar acostumado com isso, mas toda vez que um novo evento de cinema virtual acontece, me surpreende o reducionismo lacrador pelo qual algumas obras são recebidas por um time de especialistas. Comentários prévios sobre “Edna“, documentário dirigido por Eryk Rocha e parte da mostra competitiva de longas-metragens nacionais do Festival É Tudo Verdade 2021, contribuem para a ideia de que tudo o que foge de fórmulas de leituras simplistas tende a criar um racha de opiniões, por vezes incompreensíveis.
Uma das produções mais emocionantes e fortes da edição deste ano parece colocar à prova a ideia de forma e estilo em oposição ao discurso, à representação. Sem contar toda a trajetória do cineasta em sua filmografia, o que torna seu mais recente trabalho coerente com sua carreira, somos levados em uma narrativa imersiva sobre uma protagonista que evita se revelar. Quando faz é aos poucos e refletindo o medo – do passado e do presente. Os créditos ao final dedica a obra a Paulo Fonteles Filho, o preso político brasileiro mais jovem que se tem conhecimento – vítima da violência estatal antes mesmo de nascer.
A curiosidade por trás da figura de “Edna“, do aparente virtuosismo da fotografia em preto e branco e os enquadramentos que parecem sempre se aproximar demais, revela três momentos do Brasil, lidos como fases para quem assim o deseja, mas parte de um processo, uma montanha-russa opressora para o povo trabalhador. Qual a diferença de 1968, 1996 e 2020? Você pode responder como: endurecimento da ditadura, democracia aparentemente estável e alto risco de ruptura institucional. Para a senhora Edna, a resposta poderia ser: nenhuma.
Nascida em 1950, ela não conheceu o pai, que abandonou sua mãe com sete meses de gravidez e sete filhos para criar. Seus irmãos auxiliaram, estando presente. O primeiro estranhamento do espectador é que não há um depoimento aparentemente espontâneo. Aquela senhora lê suas impressões, fruto de diários que ela alimenta, como se pudesse esvaziar a mente da sequência de traumas sofridos durante a vida. No meio de falas sobre sua rotina e sobre o passado, trecho de um clássico poema de Camões. Quando transportamos lembranças para o papel – ou qualquer outro meio de representação – acabamos envolvendo nosso discurso em algo que vai do cru ao lúdico, da fantasia à realidade. No olhar de Eryk Rocha, parte das imagens construídas também tem essa textura do belo em meio ao drama.
Até que aquele território, que até quase a metade do longa-metragem soa pacato, parece pouco transformado, revela um rastro de sangue. Assassinatos promovidos por fazendeiros, esmagamento como consequência do avanço do agronegócio e o crescimento das religiões neopentecostais que, ao ocuparem um grande espaço na realidade dos cidadãos, legitimam a ideia do destino do oprimido – e da teoria da prosperidade que depende que você pague primeiro e receba depois. Um conforto de fé, a bem da verdade, mas que não deixa de funcionar como célula desarticuladora de comunidades que se unem por um ideal divino, pela esperança naquilo que ultrapassa sua existência mundana.
As palavras de Edna vão ganhando contornos de lição. No meio daquelas mudanças (?) lentas (?) em que tudo parece igual, ela nos ensina que a territorialidade é um vínculo nosso, é uma condição para a nossa existência. Para a terra, nós somos apenas adubo. Nos encontraremos lá embaixo, alguns com os olhos comidos por minhocas, mas com a posição social e os privilégios intactos. É quando a protagonista revela seu caderno mais cruel, sobre o massacre de Eldorado do Carajás, que completou 25 anos no dia da sessão do filme no É Tudo Verdade.
A falta de sensibilidade de quem analisa e critica aspectos como a mixagem do som do filme soa como irresponsabilidade. Aquela senhora fala baixo, sussurra, com medo de ser ouvida. Ela exige de você compreensão, sobre seu passado, suas condições, suas características. Você responde com o mesmo reducionismo tacanho daqueles que resumiram “Paraíso” a um punhado de cenas de pessoas cantando.
Há algo errado em um grupo que olha o que Eryk Rocha faz em “Edna” e opta por ser irônico, engraçado, debochado. Vivemos em um país em que esses elementos, que desenvolvemos como questão de sobrevivência, ganham um tamanho desproporcional. Além de fugirmos da luta, também corremos do debate (não é só o Presidente) e, pior, não respeitamos aqueles que tentam. Quebrando a fotografia em preto e branco, somos conduzidos pelas flores amarelas, a cor da saudade. O lamento de vidas perdidas, por um Estado que não nos valoriza e por uma sociedade que quer nos hierarquizar. As cores também evocam o pior sentimento que uma obra que se propõe a revisitar um momento histórico pode provocar: a de que não há nada mais atual do que a sensação de um genocídio em curso.
Veja o Trailer:
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