Sinopse: Guzmán é um guarda florestal que patrulha a selva em busca de caçadores ilegais. Venneck é um querido colono da região e caçador. Sara, uma médica rural comprometida, é casada com Guzmán e foi companheira de Venneck. O aparecimento de um jaguar mítico reacenderá uma antiga rivalidade entre eles.
Direção: Martin Desalvo
Título Original: El Silencio del Cazador (2019)
Gênero: Drama
Duração: 1h 43min
País: Argentina
Toda Honra e Toda Glória
A câmera tremida, a sensação de perseguição, a construção da metáfora. Assim tem início “El Silencio del Cazador“, filme argentino dirigido por Martin Desalvo que abre a seleção de longas-metragens internacionais do 48º Festival de Cinema de Gramado. A partir de um triângulo formado por Ismael Guzmán (Pablo Echarri), Orlando Venneck, o Polaco (Alberto Ammann) e Sara Voguel (Mora Recalde) – já descrito na sinopse – o filme traz uma alegoria sobre o orgulho masculino e as trágicas consequências quando dois exemplares da espécie se entendem por feridos em suas honras.
A história se passa nos arredores de Posadas, cidade do nordeste do país e fronteiriça com o Paraguai. Ali a cultura do gaúcho ainda se faz muito presente. Além das cuias para seus chás, o churrasco e a música regionalista a partir do acordeão, outra manifestação cultural local é a caça. Atividade cada vez menos aceita por conta de legislações mais rígidas, tanto em relação ao meio ambiente quanto à propriedade privada e posse de armas (a primeira e a terceira não sabemos até quando). Neste ambiente, Desalvo destrincha a premissa inicial da rixa entre Guzmán e Orlando causado pelo relacionamento prévio de Sara, esposa do primeiro, com o segundo. Consegue atingir essas perturbações causadas por homens que não se resolvem com o fim de hábitos de seus antepassados.
Mais do que isso, “El Silencio del Cazador” traz um olhar crítico sobre essa relação ancestral. Uma comunidade (de homens, sempre – é a perspectiva da obra) que respeita um passado que teve seus pais e avós construindo com os próprios braços aquele território. Mas, ao mesmo tempo, não se afasta de um conflito velado entre classes sociais, que sempre viu os donos de terra explorarem a força de trabalho dos mais humildes. Isso fica claro na forma como Polaco se impõe sobre Ismael, um guarda florestal que nunca se conformou com a maneira como seu pai foi tratado pelo pai de seu antagonista. Raiva e ingratidão servindo como mola propulsora daquelas relações que, sob essa perspectiva fálica, envolve disputas sobre a mulher amada, chutes e pontapés.
Se há um ponto que incomoda nas representações do filme é a maneira como Sara se apresenta. Um vértice de um triângulo (poderíamos dizer uma hipotenusa que liga dos catetos) que, a despeito de tratada como coadjuvante, é a única personagem que toma atitudes desprovidas de motivações convincentes. Aqui pode haver uma bifurcação de opiniões. Aceitando a perspectiva masculina da obra, o trânsito de Mora Recalde pela tela pode ser até coerente, mas é possível concordar que há – sob esse viés – um empobrecimento da narrativa.
Afastado tal incômodo por esse jogo mal delineado de Sara, a escalada de conflitos entre os dois homens fica bem interessante. É nítido que o fato gerador é o “amor da donzela”, mas aos poucos essas divergências sociais e até ideológicas ganham força. Fica a reflexão sobre qual seria a causa e qual a consequência dentro dessa dinâmica baseada na competição. O antagonismo total de Ismael e Polaco é uma construção feita com premissas conflitantes que poderiam ser resolvidas entre os dois. Só que, a partir do momento em que se colocam como totalmente incompatíveis, aceitam levar isso até o final.
Por fim, o filme atinge seu objetivo e entrega um clímax carregado de testosterona e visceralidade. Não gostamos de usar a segunda expressão, mas é incrível como ela casa tão bem com a primeira. Martin Desalvo mastiga suas propostas alegóricas e metafóricas de manual, aplicando os conceitos de caçador e caçado e trazendo o misterioso animal para o centro da ação. De fundo, faz um pequeno arco com um menino chamado Surdo. Ele que, no início de “El Silencio del Cazador” é ajudado por Gúzman para sair da lógica exploratória da fazenda do pai de Orlando, se encerra com uma importante função – e lição – na história. Esperamos que, no meio de todo o embate primitivista daqueles homens, o jovem, de fato, não tenha lhes dado ouvidos.
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