Emergência

Emergência 2022 Crítica Filme Amazon Prime Poster

“Emergência” estreou no Amazon Prime Video. Leia a crítica!

Sinopse: Prontos para uma noite de festas lendárias, três estudantes universitários terão que pesar os prós e os contras de chamar a polícia quando se deparam com uma situação inesperada.
Direção: Carey Williams
Título Original: Emergency (2022)
Gênero: Comédia | Drama | Suspense
Duração: 1h 45min
País: EUA

Emergência 2022 Crítica Filme Amazon Prime Poster

Coming of Racism

Emergência“, longa-metragem que estreou na última sexta-feira no serviço de streaming Amazon Prime Video ao redor do mundo, pode cumprir em 2022 uma trajetória parecida com uma das mais bem-sucedidas produções do ano passado. E talvez mereça. Falo isso não porque tenho dúvidas sobre qualidade e impacto do filme, apenas porque não chegamos sequer em junho, o que torna impossível falar de favoritismo e destaques da temporada de premiações quando boa parte dos postulantes se encontram, ainda, na sala de montagem.

O coming of age dirigido por Carey Williams refaz o roteiro escrito por K.D. Ávila para o curta-metragem vencedor do Festival de Sundance de 2018. Por sua vez, a autora esteve na última cerimônia do Oscar por outro trabalho, a distopia “Please Hold” (2020). Estreando na mesma mostra em Utah, a comédia dramática deu a ela mais um troféu como roteirista, em júri que deu o prêmio de melhor filme para “Nanny” (2022), escrito e dirigido por Nikyatu Jusu, mais uma talentosa realizadora a se juntar a Wiliams e Ávila.

Distribuída no Brasil também pelo Amazon, “Emergência” faz lembrar um pouco “No Ritmo do Coração” (2021) em sua forma – apesar de se afastar (e muito) do seu conteúdo. Um resgate dos códigos dos filmes de adolescente com um olhar crítico, representativo e deflagrador do racismo estrutural. Se na comédia mais doce de Sian Heder, a protagonista vivida por Emilia Jones é uma jovem deslocada, querendo explodir em sua revolta e não o fazendo por ser um elo entre pais e irmãos surdos e a sociedade, aqui temos um subgênero que habita o cinema norte-americano há muito tempo: as desventuras de garotos atrás de diversão por uma noite.

Sean (RJ Cyler) e Kunle (Donald Elise Watkins) são dois estudantes negros da Universidade de Buchanan a dois meses de suas formaturas. Eles se programam para fazer uma maratona por todas as baladas que acontecerão naquela noite, um circuito considerado uma “noite legendária“. Por trás desse objetivo criado, a tentativa de entrar para o hall da fama dos feitos de homens e mulheres negras no campus. Ao mesmo tempo em que são colocados em caixas por uma sociedade racista, seu poder de auto-organização e associação acaba tornando realizações dignas de orgulho. Portanto, eles querem ser os primeiros estudantes negros a completarem a noite legendária.

Dávila caracteriza os protagonistas pelas suas semelhanças e também nas diferenças. Sean é um rapaz mais despojado, festeiro, quer estudar sem deixar de aproveitar cada momento dos anos mágicos da faculdade. Portanto, não dispensa uma balada, gosta de beber, fumar e encontrar os amigos sempre que tem um tempo livre. Ao mesmo tempo, possui uma consciência social mais latente, enraizada em sua existência porque se propôs a ocupar os espaços e sentir o que acontece com um jovem negro. Ele passa toda a história fazendo cálculo de rota, por vezes ignorado pelo colega.

Kunle é um prodigioso pesquisador, filhos de médicos que acaba de ser aprovado para cursar uma especialização em Princeton. Alvo de preocupação da mãe, que sabe as “armadilhas” que um campus de Universidade nos oferece em um sábado à noite, ela parece querer lapidar – à distância – o filho. Esse estranhamento terá consequências bem à frente, quando “Emergência” coloca Sean para dizer de maneira direta o quanto Kunle precisa abrir os olhos para não ser tão cooptado pela lógica meritocrática que torna todo o racismo que o cerca algo menor ou uma obra do acaso. Sua base de privilégios acaba fazendo com que ele opte sempre por seguir um sistema que sabidamente não lhe acolhe.

O que Williams faz é tirar boa parte do verniz da comédia de produções deste subgênero, tornando parte do humor algo involuntário e apostando mais na tensão. Ela se forma quando os personagens, ao passarem na casa de Carlos (Sebastian Chacon) antes de começarem a noite legendária, encontrarem Emma (Maddie Nichols), uma branca, loira, menor de idade, inconsciente no chão da sala.

A forma como os diálogos e suas abordagens fundamentais se inserem na trama é um dos grandes desafios superados pelos trabalhos da diretora e da roteirista. Se em filmes como “No Ritmo do Coração” é muito mais fácil usar a imagem, tornar um pouco mais nebuloso estereótipos e linguagens comuns a um coming of age que se passa em uma noite de farra no colégio ou faculdade, aqui a verbalização é capaz de tornar o longa-metragem mais acessível ao espectador-médio. Por isso que é possível que a obra ganhe um carinho especial da Amazon (que no Brasil apenas distribuiu CODA, seu Oscar de melhor filme pós-Sundance foi resultado do investimento da Apple). Tanto que, ciente da necessidade de estrear nas salas de cinema para concorrer em 2023, “Emergência” foi lançado por lá uma semana antes de chegar aos streamings globais.

A partir do dilema sobre as consequências de acionar a polícia para tratar de uma situação que nenhum dos três jovens consegue explicar, “Emergência” se transforma em uma noite inesquecível no campus sem festas, bebedeiras, sexo e diversão. É a antítese dos sucessos carregados do chamado besteirol como “Porky’s – A Casa do Amor e do Riso” (1981), “American Pie – A Primeira Vez é Inesquecível” (1999) e “Superbad – É Hoje!” (2017). É uma releitura que utiliza os signos, tal qual Olivia Wilde fez em “Fora de Série” (2019) colocando duas meninas brancas (porém fora dos padrões) para viver as experiências que o cinema reservava aos homens. Contudo, abandona todos eles à luz do racismo estrutural que não permite a Sean, Kunle e Carlos ocupar a cidade da forma como esses filmes querem dizer que podemos ocupar.

Se em 2021 o curta-metragem “Dois Estranhos” (2020) foi alvo de críticas pela forma como usa o humor e o formato “dia da marmota” para mostrar todas as combinações possíveis em que uma abordagem policial a um jovem negro termina em morte, aqui esse assunto está sempre presente, mas em uma mistura de fuga e criação de consciência, a partir das trocas entre os protagonistas. Kunle começa a ver que não é exagero de colegas a forma como a sociedade faz leituras discriminatórias e violentas sobre seus corpos – colocando a Polícia como autoridade para chancelar seu racismo. Uma trajetória parecida com o personagem de Daniel Kaluuya em “Corra!” (2017).

Aqui os brancos são menos monstruosos do que o cinema de Jordan Peele, mas suas hipocrisias são igualmente assustadoras. Ao contrário de “CODA”, que colocou o rosto já conhecido Emilia Clarke como frontrunner, aqui  Maddie (a igualmente famosa Sabrina Carpenter) aparece quase à margem da história. Todavia, ela é a grande culpada pelo sumiço da irmã, já que levou uma menor de idade a uma festa de faculdade e a negligenciou (algo que o roteiro faz sua amiga, Alice, falar diretamente a ela). Já a casal de meia-idade, mais abraçado ao conservadorismo, consegue ser ainda mais hipócrita: filma de sua janela um carro estacionado em sua rua que, apenas porque tem um jovem negro ao volante. Prontos para acionar força policial imotivadamente, possuem no quintal uma placa “Black Lives Matter“, mostrando que sua desconstrução é apenas da porta para fora.

As codificações do longa-metragem com esse tipo de produção popularizada nos anos 1980 devem ser um objeto de estudo à parte. Um que me veio muito à cabeça foi “Sem Licença para Dirigir” (1988), estrelado pela dupla queridinha dos adolescente, Corey Haim e Corey Feldman. Uma obra sobre abusar de uma jovem embriagada, com tanta romantização que tenho até meio de revisitar. Fará mal à vista, assim como o usar de algumas palavras de ordem racista que podemos ouvir em produções desta época (tanto filmes dos EUA quanto novelas brasileiras). Aliás, essa abordagem acerca do poder da palavra é um prólogo interessante em “Emergência”, gerando uma quebra de expectativa.

A diferença é que na obra de 1988, dois jovens brancos andando de carro com uma adolescente inconsciente não gerava nenhum temor uma abordagem policial letal. Aqui veremos esse estágio de suspensão de maneira constante. A ponto de haver uma antecipação de clímax para que os agentes da lei (invisibilizados no olhar de Carey Williams) possam ter acesso a Sean, Kunle e Carlos. Isso permite que o ato final traga os primeiros momentos de eventos pós-traumáticos que marcarão, para sempre, a vida de Kunle.

Emergência” pode repetir o feito de “No Ritmo do Coração” ao ressignificar gêneros e símbolos de um cinema norte-americano que sempre se pautou pela sub-representação. Aquele que realizadores nos últimos trinta anos começaram a produzir até encontrar certo grau de popularidade e de reconhecimento crítico. Pode ser que essas duas obras estejam longe de serem os melhores exemplares de uma proposta de Hollywood desconstruída, mas atendem uma demanda. E se em 2023 um raio parecido cair de novo no meio da cerimônia da Academia, espero que não diminuam mais uma vez o feito de quem os criou.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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