Encarcerados | Entrevista

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A Discussão que Permanece

Os escritos do médico e escritor Drauzio Varella se tornaram fonte importante para os debates envolvendo a política carcerária no país há muitos anos, como tratamos em nossa crítica sobre “Encarcerados”. Para a estreia do documentário, dirigido por Claudia Calabri, Fernando Grostein Andrade e Pedro Bial, uma entrevista coletiva – que contou com a participação da Apostila de Cinema – foi promovida de forma virtual.

Ali estavam alguns dos responsáveis pela leitura crítica da mídia mais hegemônica, dentre as hegemônicas, do Brasil. Os cineastas e o autor, acompanhados de Claudio Gullane e Andrea Giusti, das produtoras do longa-metragem (Gullane e Spray), responderam por uma hora perguntas dos jornalistas. Cada um atuando de forma estratégica no projeto, que – como vocês lerão abaixo – foi desenvolvido em princípio para atingir a ponta final, essa agora que chega aos cinemas na quinta-feira, dia 26, e na GloboPlay junto com a temporada da série no sábado, dia 28.

Os últimos anos foram tempos difíceis para alguns agentes – e não falamos apenas dos carcereiros que Drauzio traz em seu livro. Com uma política de desvalorização da vida e desumanização, que une neoliberalismo com outras vertentes políticas inomináveis, vozes como a do escritor se tornam mais urgentes enquanto contraponto. A forma como a pandemia foi tratada nos presídios federais, sem dúvida, é um dos pontos futuros que ele – e aqueles que se inspiram nele – terão pela frente.

Enquanto isso, Bial, em seu programa de entrevistas, cumpre a linha tênue (para alguns, rompida) de dar visibilidade a todos os espectros sociais, políticos e culturais que encontram relevância no país. Ele é também um agente, comprometido com os valores do jornalismo, na busca cada vez mais difícil por isonomia. E também deve viver tempos difíceis. Sobre os responsáveis por duas produtoras audiovisuais no país, não precisamos nem desenvolver muito – a certeza de que a Cultura é alvo já é o suficiente.

Já as visões sobre uma sociedade justa e igualitária, mote dos trabalhos de Claudia e Fernando, parecem inabaláveis. E devem o ser para que avanços sobre pensamentos humanitários, que tiveram experiências como a de Drauzio como um dos pontos de partidas, não sejam perdidos – mesmo em período obscurantista. Com a palavra, os responsáveis por “Encarcerados“.


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Encarcerados | Entrevista | Pedro Bial

Dificuldades da Produção e Legado

Ao serem questionados sobre desafios e dificuldades da fase de produção e como gostariam que o filme fosse entendido no atual contexto do país, Pedro Bial iniciou as falas registrando que o objetivo era dar voz a agentes que a sociedade mantém invisível para fazer um trabalho que ela não gosta de encarar de frente. Quando ele leu o livro percebeu, desde logo, que havia terreno para explorar aquelas narrativas no audiovisual. Ao conversar com Drauzio Varella, este lhe indicou Fernando Grostein Andrade como potencial parceiro, profissional que ele não conhecia antes desta ponte.

O documentário agora lançado era a ideia inicial de projeto depois do livro. Porém, como os caminhos e os tempos de projetos possuem vida própria, até o longa-metragem documental ganhar a praça, duas temporadas da série “Carcereiros” e o filme ficcional chegaram na frente. Com isso e diante dos recentes acontecimentos do Brasil, os temas ganharam ainda mais urgência e atualidade. A política carcerária foi algo que se agravou. Ele também tratou da diferença entre as abordagens sobre a realidade enquanto jornalista e documentarista. Na segunda forma, ele o faz de forma mais autoral e preocupado – além de informar – de proporcionar uma experiência ao espectador, para que ele possa ver pelos olhos dos personagens que estão contando aquela história.

A ideia é que “Encarcerados” tenha o ponto de vista dos carcereiros, o que traz um outro tipo de responsabilidade. Há, também, uma relação diferente com seu juízo de valor. Em um livro como o de Drauzio, na forma como ele expõe os motivos, observa-se que é algo que transcende este juízo. Bial, então, se valeu de uma relação de confiança com os outros diretores.

Fernando, que teve contato com Varella na produção de “Quebrando o Tabu” (2011), a partir das histórias de mulheres que traficavam drogas para dentro do presídio, se interessou em ampliar essa abordagem no futuro – usando a rotina dos centros de detenção como argumento de algum trabalho. Claudia Calabri, com a concordância de todos, disse então desejar que o legado da obra seja o de ampliar as reflexões que ocorrem majoritariamente no âmbito do Poder Judiciário para a sociedade – trazendo as histórias ali colocadas como exemplo no centro do debate.

Até que Drauzio Varella trouxe parte de sua experiência atuando juntos aos presídios. Disse que seu mundo de classe média condiciona essa vivência sob a falsa ideia de que ele que ajudaria aqueles agentes e detentos. Enquanto, que, na verdade, são eles que os ajudam. O médico foi parceiro de Claudia em outros projetos e já admirava a Gullane enquanto produtora, sobretudo na adaptação de “Carandiru: O Filme” (2003), ficando feliz com essa aliança, porém, não quis interferir nem na narrativa do documentário e nem nas ficções.

Refletindo sobre sua carreira e pelo retorno que suas obras tiveram junto ao público em geral e na opinião pública, ele diz se sentir como um apostador no cassino que acerta 36x na mesma roleta. Drauzio escreveu “Carcereiros” a partir do olhar de admiração ao trabalho desses personagens, são pessoas que a sociedade colocam ali para cuidar de uma questão pela qual ela não quer se envolver, como disse Bial. Enquanto escritor, ele se preocupa com a criação de imagens a partir das palavras, bem diferente do que o audiovisual objetiva. Mesmo assim, na primeira versão do filme ele já gostou muito, encontrou ali o seu livro, creditando na união de pessoas em volta do projeto esse sucesso.


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Encarcerados | Entrevista | Drauzio Varela

Os Medos da Exposição

Na sequência, o assunto passou a ser o processo de produção em si. E isso envolve o medo de exposição dos dois lados. Tanto da equipe que adentra o sistema, com poucas informações e a imprevisibilidade do que lá encontrará, quanto dos personagens – detentos e carcereiros – que temem pelas consequências de suas falas.

Drauzio Varella lembrou que, durante todo o tempo todo de suas visitas, observou que os agentes prisionais, até por serem funcionários públicos, estão sempre preocupados com o que vão falar a todo tempo. Por isso, evitam a imprensa, possuem para com ela certa desconfiança. Ganhar essa confiança não é tão fácil e percebeu, no resultado final do filme, que a equipe de produção conseguiu.

Ele também colocou luz sob um aspecto importante, envolvendo a diferença entre presídios masculinos e femininos. A prisão da mulher, geralmente, envergonha a família mais do que a dos homens. Para ele, naturalizou-se a prisão masculina em algumas comunidades. Já a feminina leva consigo uma conotação sexual, especula-se sobre sua vida privada, o que não ocorre do outro lado. Isso leva ao abandono. No livro esse cita caso de dois irmãos presos, em que a família dá suporte ao filho e sequer visita a filha – algo muito frequente. O abandono é a regra, sendo mais comum a avó do que a mãe visitar a mulher.

Enquanto que Claudia Calabri afirmou que era mais comum situações de assédio, com piadas de cunho sexual, em penitenciárias femininas. Já nas masculinas, além de conhecer os agentes há mais tempo, as determinações do PCC de respeitar a chegada da presença de uma mulher auxiliou na experiência. Entretanto, era impossível tornar sua presença despercebida Ela ainda lembrou que Fernando Grostein mostrou cortes preliminares da obra nos presídios para mostrar que o uso daqueles discursos não estavam sendo desencaminhados – parte importante desse exercício de construção de confiança, demonstrando que a ideia não era de descontextualizar. Além disso, diálogo com lideranças e liberdade total para quem não queria aparecer ou queria ter o rosto coberto foram fundamentais.

A produtora Andrea Giusti registrou que a visão de mundo de todos os envolvidos foi ampliada com o desenvolvimento do projeto. Isso impactou, inclusive, nas relações com os executivos. A preocupação era deixar os personagens confortáveis para contribuir, nos limites da ética de sua carreira, com falas para compor o documentário.


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Continuação e Continuidade

As perguntas relacionadas a uma continuação soariam naturais. Afinal, com um seriado de sucesso com duas temporadas concluídas e uma transposição ficcional para a tela grande, é notório o interesse do espectador sobre o tema.

Pedro Bial diz, que sem dúvida, esse é um universo que sempre irá atrair a atenção da mídia e sociedade. Ele espera que, como novas etapas deste projeto, reunindo a mesma equipe ou não, o assunto seja abordado de forma honesta e generosa, como o documentário o faz.

Isso leva às questões envolvendo a continuidade do que é tratado em “Encarcerados“.

Claudio Gullane menciona a homenagem feita a Rony, agente com papel tão especial e importante não apenas na produção do documentário, mas também na pesquisa – e que foi vítima de covid-19. Para ele, a pandemia expôs ainda mais a falta de estrutura, a partir de uma doença que se espalhou entre os detentos e fez o PCC, mais uma vez, ter que suprir a velha lacuna do Estado. Portanto, novas leituras se tornaram possíveis.

Fernando Gronstein fez uma participação final para tratar da necessidade de sair dessa lógica de punição. Há três anos morando na Califórnia, ele testemunha o uso de maconha para uso medicinal. Um negócio que recolhe imposto e gera empregos. Para isso dar certo em locais como o Brasil, a sociedade precisa deixar de lado a hipocrisia. O que se vê hoje são jovens de classe média pegos com a mesma quantidade de drogas pela polícia sendo liberados como usuários, enquanto que os da periferia são presos e ficam encarcerados como traficante.

Um pensamento que já merecia ser estendido até a drogas consideradas mais pesadas. Ser parte da solução o fornecimento sobre supervisão médica como parte do tratamento. O uso com acompanhamento é um projeto capaz de desestimular, mas tem no processo de regulamentação uma barreira hoje intransponível – por conta de tabu. No momento, a forma de se adquirir é por meio do tráfico, que segue o caminho contrário, de estimular o uso como negócio.

Encarcerados” joga luz em aspectos da sociedade com o intuito de libertar ou, pelo menos, melhorar. Prisão é feita para reabilitar, mas hoje a “conta não fecha”. Combater as drogas pela via da oferta, ao invés da demanda, gera uma superlotação e faz com que testemunhemos uma verdadeira bomba-relógio em curso. Para ele, o que deve ser revisto é pelo ponto de vista da legislação.

Clique aqui e leia a crítica de “Encarcerados”.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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