Encarcerados

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Leia crítica e entrevista sobre “Encarcerados”, documentário que estreia nesta quinta-feira.

Sinopse: Filmado em oito penitenciárias de São Paulo, “Encarcerados” revela a vida dos carcereiros. Elos entre o Estado e o crime, entre o exterior e o interior dos presídios, permitem uma reflexão sobre o sistema penitenciário brasileiro, através dos olhos de (anti)heróis anônimos que guardam os portões do inferno que a sociedade escolhe ignorar.
Direção: Claudia Calabi, Fernando Grostein Andrade e Pedro Bial
Título Original: Encarcerados (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 12min
País: Brasil

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Onde Está a Razoabilidade?

Encarcerados” é daquelas obras que mostra que não há lados quando se fala de direitos coletivos ou difusos. Portanto, a preconceituosa ideia de que a humanização de comportamentos é algo “benéfico” a criminosos, cai por terra quando a realidade atropela a construção distanciada de quem quer fazer política pública sentado no gabinete, quem quer ativismo (apenas) em redes sociais. O documentário, que estreia nesta quinta-feira no circuito nacional e – como antecipado em nosso texto sobre a entrevista coletiva de lançamento – chega dois dias depois à plataforma GloboPlay, permite dentre várias discussões, essa: a de que a fronteira entre agressor e vítima é bem tênue em um sistema punitivista.

Os diretores Claudia Calabi, Fernando Grostein Andrade e Pedro Bial revisitam histórias a partir do livro “Carcereiros“, escrito pelo médico Drauzio Varella. Nomes de forte impacto midiático, que atraem para o projeto o duplo braço na Globo como instituição: o jornalístico e o artístico. Traz um grupo de realizadores centrado e concentrado em objetos que, em uma realidade pautada pelo bom senso, revelaria empatia imediata para com todos os personagens envolvidos. Porém, as coisas não são tão simples assim. Ainda há devaneios no sentido de tornar heroica a atividade de agentes penitenciários, última ponta do controle policial do Estado, bem como ainda há o ranço que desumaniza os integrantes do sistema carcerário, como se fosse uma massa de gente que só readquire o direitos e individualidades após o juízo de execução penal permitir.

Sendo assim, “Encarcerados” mostra os trabalhadores saindo de casa à paisana (algo que, no Rio de Janeiro, é estendido a toda tropa não como recomendação e sim determinação). Ser invisível é parte do processo. Na entrevista, tanto Bial quanto Drauzio trouxeram uma importante analogia: são pessoa as quais terceirizamos um trabalho que ninguém quer ter. São esquecidos ali, junto com os presos. Afinal, quem se preocupa com ressocialização? Quem admite um funcionário que coloca no currículo que está em regime semiaberto? Quem chama para conversar um postulante à vaga que consta na folha de antecedentes, mesmo depois de esgotada a pena, um crime violento? Quem permanece inabalável em um relacionamento, tanto de amizade quanto de afeto, quando alguém diz que aquela pessoa “já teve problemas com a polícia”?

Parte desse preconceito enraizado em nossas mentes é a prova de que o o sistema não funciona. Os carcereiros apresentados no longa-metragem até denotam uma idealização de carreira ou uma ascensão que mistura um perigo menor do que andar pelas ruas armados, ao mesmo tempo que vivem sob o risco de uma rebelião. Tanto os escritos de Varella quanto alguns dos representantes do filme viveram de perto a ascensão do PCC, como resposta ao massacre do Carandiru. Por mais que hoje haja lideranças bem definidas e constantes negociações, o sentimento de tensão parece não arrefecer.

Já nas penitenciárias femininas, “Encarcerados” escancara o tratamento desumano. Sem qualquer preocupação com gestante, lactantes e transformando seus bebês em uma extensão de suas penas, talvez sejam as imagens que batam mais forte no espectador. Uma ala ainda mais invisível dentro de um arco de invisibilidade. Em paralelo, a montagem da obra consegue informar (sem didatizar) e trazer à tona a cronologia que nos fez chegar até aqui, desde que os holofotes da imprensa se colocaram frente ao sistema em 1992, com o comando do Coronel Ubiratan – depois deputado federal em 1998, concorrendo com o número que fazia alusão aos assassinatos. Por mais que estejamos acostumados com algumas imagens fruto de reportagens (ao contrário de certa apreensão que o público teve em “Justiça“, “Juízo” e outros filmes do início do século), ainda chama a nossa atenção, ainda tem um forte poder de provocar reflexão a partir desse choque.

No momento das gravações do documentário, a consolidação de estatutos e regras gerais de conduta levaram alguns dos personagens atestar que estavam lidando “relativamente bem”. Porém, entre as primeiras apresentações do filme na edição de 2019 da Mostra SP e sua estreia nas salas de cinema, quase dois anos depois, um outro agente desumanizador surgiu: uma pandemia que foi naturalizando as mortes em profusão. Poucos se preocuparam, mais uma vez, com o sistema prisional. A ponto da pouca repercussão da luta judicial para incluir os detentos em grupos prioritários de vacinação já que, obviamente, eles vivem confinados, na superlotação de uma lógica punitivista que nunca cessará.

Ou seja, as revisitações a esses espaços serão sempre urgentes e necessárias. Tanto quando os contextos externos se alteram, mas para entender o que se passa lá dentro e que o Estado não quer que você saiba. Enquanto o Presidente Jair Bolsonaro solta um novo balão de ensaio golpista ao protocolar pedidos de impeachments de Ministros do STF, um de seus algozes surge na parte final de “Encarcerados“. A fala de Luis Roberto Barroso – que, ao lado de Alexandre de Moraes compunha a bibliografia básica de qualquer cadeira constitucionalista de cursos de Direito há dez anos – sintetiza o tamanho do problema e mostra que a solução, mais do que partidária e ideológica, passa por aceitar que Direitos Humanos não é questão de opinião.

Veja o Trailer:

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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