Juízo

Juízo Documentário Brasileiro 2007 Filme Netflix Crítica Pôster

Sinopse: No Rio de Janeiro, a diretora Maria Ramos testemunha e filma o julgamento de vários adolescentes acusados ​​de roubo, tráfico e homicídio. Os jovens menores são protegidos pelas leis brasileiras e seus rostos não podem ser expostos; portanto, eles são substituídos por outros adolescentes envolvidos na mesma realidade.
Direção: Maria Augusta Ramos
Título Original: Juízo (2007)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 30min
País: Brasil

Juízo Documentário Brasileiro 2007 Filme Netflix Crítica Imagem

A Imparcialidade que Desumaniza

Realizado três anos após “Justiça“, o documentário seguinte de Maria Augusta Ramos, “Juízo“, também chegou esta semana ao catálogo da plataforma de streaming Netflix. Desta vez, a cineasta leva a ideia de retratar a rotina de salas de julgamento de casos criminais para outra esfera, analisando a conduta do Estado perante os menores acusados de infração e a aplicabilidade do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), na época com menos de vinte anos de vigência. O resultado é bem parecido com o documentário anterior: a falta de acolhimento de um Poder Judiciário que se esconde no manto da imparcialidade. Contudo, há formas diferentes de expressão por parte da cineasta.

A primeira diz respeito à própria construção do filme. Por força de uma legislação que protege e exige que não se explore a imagem de jovens como aqueles que ali estão, a montagem da obra necessitou de um aditivo ficcional. As sessões de julgamento eram filmadas sem que o rosto dos meninos e meninas fossem mostrados, sendo substituídos por um elenco formado por outros adolescentes familiarizados com a realidade das pessoas omitidas. O trabalho de edição da própria Ramos ao lado de Joana Collier soa perceptível apenas por força da mensagem que abre a projeção.

Joana, por sinal, iniciava sua carreira em “Justiça” e “Juízo” e se tornou uma das grandes montadoras do Brasil na atualidade, em produções como “A Cidade do Futuro” (2016), “Pacarrete” (2019) e “Hebe: A Estrela do Brasil” (2019), que lhe deu um kikito no Festival de Gramado há dois anos. Já Maria Augusta retornaria em outras produções fundamentais na década seguinte, como “Morros dos Prazeres” (2013), sobre o primeiro ano da Unidade de Política Pacificadora naquela comunidade e “O Processo” (2018), sobre o procedimento kafkiano que levou ao golpe antidemocrático de 2016 com o impeachment de Dilma Rousseff.

Juízo” se coloca em um momento importante de debate sobre a cooptação de menores pelo tráfico de drogas, em abordagens que perseguem toda a complexidade que o tema exigia. Após atrair atenção em uma lógica expositiva, “Notícias de uma Guerra Particular” (1999) de Katia Lund e João Moreira Salles se tornou envelhecido pela olhar naturalizado, porém pouco aprofundado. Algo que surge a partir da retomada do poder de fala, em um discurso direto e reapropriado como foi “Falcão – Meninos do Tráfico” (2006). O longa-metragem de Maria Augusta, que chega um ano depois do média de Celso Athayde e MV Bill, parece complementar porque nos leva a uma outra frente.

Talvez por isso nos deparemos com uma obra ligeiramente mais contemplativa do que a anterior da diretora. Há um apego maior por sequências de observação, principalmente as que nos leva às instituições onde os menores estão internados. Porém, quando voltamos ao Juizado, não há como desassociar a figura da Juíza Luciana Fiala do filme. Por sinal, para aqueles que já assistiram ao documentário, indico a primeira parte de uma recente entrevista que ela deu ao canal do advogado Lucas Portela no YouTube. Antes mesmo de encontrarmos sua fala atual, todas as percepções que faremos dela já eram sentidas – e, em boa parte, confirmadas pela magistrada.

Isto porque “Juízo“, apesar de realizado pouco tempo após “Justiça”, consegue abarcar uma nova geração de juristas. Formados e empossados na era da internet, com iniciativas tecnológicas que comungariam em uma sociedade de autopromoção e de criações dos próprios conteúdos, é nítida a força mais midiática identificada nos corredores dos tribunais no início do século XXI. Fiala, que tem como mestre Geraldo Prado (adepto da corrente garantista, como citamos no outro texto), incorpora uma persona ao mesmo tempo chocante e hipnótica naquela cadeira. Nosso primeiro reflexo é entendê-la como síntese da ausência de acolhimento, da ponta final de um Estado opressor que deseja apenas encarcerar a maior quantidade de negros e pobres que conseguir.

Porém, ela é mais do que (e não apenas só) isso. Podemos, sim, entendê-la como legítima representante do Poder Judiciário, até no que se vê enquanto ausente de responsabilidade. O maior exemplo é a sua resposta ao defensor público sobre a superlotação e a incapacidade das instituições de promover qualquer ressocialização àqueles jovens. Aliás, a palavra ressocialização é dita pela primeira vez com mais de uma hora de filme – e não é à toa. A desculpa da magistrada é culpabilizar o Poder Executivo, como se a realidade não alterasse o trabalho pela qual foi designada. A juíza parece ali compelida a condenar, na letra fria da lei – e quem quiser complexificar e debater formas de melhorar a sociedade, que o faça depois que ela fizer o trabalho dela.

Nos deixa abalados essa ideia de tornar a imparcialidade da Justiça um elemento de desumanização. Voltando aos vínculos pessoais tratados na outra crítica, só avançaremos quando o Direito deixar de entender as outras ciências como acessórias e se ver dentro de um sistema, onde ele é “só” mais um. Não adianta empossar e dar sala para assistência social, psicologia, dentre outros agentes públicos fundamentais, se o juiz age conforme suas convicções e nada é capaz de destronar sua opinião. A juventude de Luciana Fiala, como ela mesmo admite na entrevista, escancara essa personalidade de uma classe privilegiada. Hoje, sem dúvida, ela não é tão caricata quanto no filme – mas outros que lhe seguiram, sem dúvidas são.

Algumas histórias nos tocam até hoje, principalmente a da menina que não queria aceitar a liberdade assistida. A cineasta tenta se manter adstrita aos espaços que se sentiu com legitimidade para explorar e faz do documentário quase um registro processual – o que nos faz querer saber mais sobre aquelas pessoas. Ao final, sabemos um pouco do destino delas, demonstrando que o longa-metragem age de forma oposta a uma visão sensacionalista de obras similares. Quando à magistrada, há elementos em “Juízo” que comprovam que sua personalidade não é tão simples quanto parece. Não é uma vilania em capa preta, o que fica registrado em uma de suas últimas falas, denotando preocupação com novos aliciamentos de um jovem para o tráfico em sua comunidade.

A questão é que ela também é Estado. Todos os que apareceram nas posições de poder de “Justiça” e “Juízo” também são. Somente alguns parecem inconformados com a realidade de encarceramento indigno e da falta de perspectiva daqueles acusados. Quase duas décadas se passaram, os filmes ficaram marcados na historiografia do cinema brasileiro, mas encontram uma sociedade incólume na forma como naturaliza seus genocídios, sazonais ou permanentes.

Veja o Trailer:

 

Clique aqui e leia críticas de outros filmes da Netflix.

Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

1 Comment

  1. Assisti o filme ontem, dia 03/02/24, dias após a fala do presidente Lula na Conferência dos Estudantes Secundaristas, em que ele enfatiza que Educação é investimento, não é gasto, e que ele opta por um programa que financia e incentiva a manutenção do jovem na escola porque não quer ter que mante-lo numa prisão. Essa é a fala que o diferencia de muitos políticos, é a fala de um presidente que pensa, respeita e de fato governa para o povo., para o bem comum.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *