Entre Nós Talvez Estejam Multidões

Entre Nós Talvez Estejam Multidões Filme Crítica Pôster

Sinopse: A construção de uma comunidade vai muito além dos muros erguidos e tijolos assentados: está na invenção cotidiana daquilo que é comum, na vida partilhada em seus perrengues e vitórias. Sob essa premissa, este longa de estreia (dos diretores de Na Missão com Kadu) documenta o dia a dia na ocupação urbana Eliana Silva, em Belo Horizonte, às vésperas das eleições de 2018. Visto de dentro, o território arduamente conquistado torna-se tão protagonista quanto seus moradores, que discorrem sobre militância política, companheirismo, amor. Junto aos registros e depoimentos está a (re)invenção da subjetividade por meio da arte, indo na contramão das narrativas totalizantes que reduzem suas existências a notícias de jornal.
Direção: Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica
Título Original: Entre Nós Talvez Estejam Multidões (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 39min
País: Brasil

Entre Nós Talvez Estejam Multidões Filme Crítica Imagem

Desesperar Jamais

Uma experiência particular é despertada logo no prólogo de “Entre Nós Talvez Estejam Multidões“, quebrando a expectativa de iniciar esse texto relembrando as obras anteriores de Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica que passaram aqui pela Apostila de Cinema, exemplificando como as produções compiladas em um festival organizado pelo MLB (Movimento de Luta nos Bairro, Vilas e Favelas) com apoio da Embaúba Filmes (que se reúnem neste longa-metragem) foram fundamentais para os primeiros dias da plataforma (a Mostra Lona, que cobrimos em seus dois recortes de forma integral).

Ao mostrar uma reunião da ocupação urbana Eliana Silva em que os moradores falam sobre a importância de reivindicação junto aos Correios das entregas de correspondências – se organizando para enviarem para eles mesmos algumas – começa mais uma obra que parte de um dos direitos fundamentais dos brasileiros – a moradia – para se subdividir em pequenos fragmentos da nossa sociedade. A vivência mencionada acima é a prova de como o Poder Público, em seus mais diversos agentes, contribuem para o sufocamento das lutas sociais – até mesmo em atos que aparentemente não se relacionam. O documentário de Pedro e Aiano se passa em Belo Horizonte e não sei se em Minas Gerais há esse expediente. Mas no Rio de Janeiro, por exemplo, o Tribunal de Justiça entende que a ausência do recebimento dos boletos de cobranças de serviços em sua residência não é motivo para o pagamento em atraso – ou inadimplemento.

A motivação, falseada em possibilidades tecnológicas, na verdade é mais um esmagamento da população vulnerável. Retira das autoridades a obrigatoriedade de resolver os problemas e deixa ao cidadão o prejuízo. Eliana Silva, agora com CEP, não vê o serviço de entrega de correspondências compelido a cumprir sua função. Quem tem a força da caneta nas mãos, dificilmente a utilizará a favor do povo.

Os diretores, então, contam essa história em um estilo diferente de “Na Missão com Kadu” (depois desdobrado no também excepcional “Memórias de Izidora“, que coloca representantes das comunidades como realizadores, a nata do audiovisual representativo brasileiro) ou “Conte Isso Àqueles que Dizem que Fomos Derrotados“, em parceria com Camila BastosCris Araujo. Sai o risco iminente do conflito, a câmera dentro da ação e passa ela a ser um observadora. Uma dupla que une a educação formal audiovisual com a antropologia e que comunga desses elementos em todas as suas produções, optando aqui por enquadramentos mais distanciados em alguns momentos ou nos inserindo em uma reunião como mais um participante.  Deixa, portanto, ao espectador o envolvimento que ele entende necessário.

Só que “Entre Nós Talvez Estejam Multidões” se passa em um momento muito particular da história do Brasil, as eleições de 2018. Chama logo a atenção que Bolsonaro não é uma palavra evitada entre os moradores. Na vida real a política é bem menos romântica do que os ativistas de redes sociais, que na tranquilidade de seus apartamentos criavam apelidos ou tratavam o candidato como Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, como se aquela eleição fosse um novo volume da coleção do Harry Potter. Para ter uma debate saudável sobre a força dos discursos de ódio, é preciso primeiro tratar com seriedade o que nos chega através. Em Eliana Silva, portanto, o candidato e, agora, Presidente do país, sempre se chamou Jair Bolsonaro.

Como, então, se preparar para uma iminente tragédia? Esse parece ser o objeto indireto do longa-metragem. Sabendo aonde chegaríamos a partir daquele ponto, todas as sequências que envolvem conversas sobre o voto nos dá uma sensação de registro histórico. Alguns exercícios interessam mais, principalmente aqueles que comprovam como as falas da direita penetraram nas camadas mais populares. Além disso, em continuidade a outros filmes que fazem essa crítica, admitir que os governos do PT não trouxeram grandes resultados na política habitacional é o primeiro escudo a ser retirado – e essa frustração é uma parte importante de “Cadê Edson?“, por exemplo, outro grande destaque de 2020.

O risco de despejo, sempre com violência e destruição, está sempre presente em documentários como “Entre Nós Talvez Estejam Multidões”. A ausência de concessão de título de posse torna inútil o cumprimento da função social da propriedade. Só que concretizar esse entendimento em um grupo de moradores, boa parte trabalhadores que não conseguem ter tempo para essas articulações, é um dos grandes desafios dos líderes das ocupações. Aceitar que, mesmo com razão, a derrota pode acontecer (ou dizerem que forram derrotados, lembrando novamente uma obra anterior de Pedro e Aiano) é uma triste sina.

Com o arcabouço político do país, dificilmente as escolhas da democracia fugirão do “menos pior”. É triste ouvir que Fernando Haddad seria melhor de ser “combatido”. A luta por habitação é daquelas que tem um antagonismo institucionalizado. Sob a desculpa de que programas de governo contemplarão (número fantasioso) de famílias ao custo de (cifras inalcançáveis) do orçamento público, o direito à moradia no Brasil segue vilipendiado. O que os diretores fazem em “Entre Nós Talvez Estejam Multidões” é criar algumas quebras na montagem em números musicais em um palco improvisado em Eliana Silva. Do gospel ao funk, jovens enaltecem suas influências em busca de um sentimento de pertencimento, de comunidade. Não há alienação em nada disso – e sim falta de vontade de analisar elementos de um grupo como engrenagens de um todo.

Porém, durante o dia muitos deles não estão mais estudando. A evasão escolar é destaque em uma das reuniões mostradas no longa-metragem. Aos poucos, a condução do documentário vai individualizando aquelas histórias, revelando agentes que verbalizam suas experiências pessoais. O resultado é louvável e animador para quem gosta muito do trabalho desempenhado por Pedro Maia de Brito e Aiano Bemfica.

Com uma oportunidade de ampliação de público pelo acesso de participar da mostra competitiva do 9º Olhar de Cinema, eles entregam uma obra com muitos elementos de destaque de suas produções anteriores – e inserindo novos. Fazem de maneira a traçar um panorama de uma comunidade para depois mergulhar, como estão acostumados a fazer. Desta vez um mergulho menos imagético e mais representativo. “Entre Nós Talvez Estejam Multidões” passa longe da articulação cirandeira de parte da esquerda metropolitana – e o faz sem sair de uma grande cidade. Não sei se nos deixa preparados para o pior, mas com um cinema tão enriquecedor quanto o deles, em temática, linguagem e abordagem, jamais deixará em quem assiste um gosto de conformismo.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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