Sinopse: “Êxtase” conta a história da jovem Clara, em sua luta para superar a anorexia. No filme, vivemos a intimidade de sua agonia, acompanhada pelo aguçamento dos seus sentidos e por uma paradoxal sensação de êxtase. Ao se privar de comida, ela cria uma rotina baseada em cálculo, repetição e ritual. Medo e vulnerabilidade são sentimentos constantes na infância de Clara. Para lidar com a situação, ela desenvolve um sistema de controle sobre a única coisa que ela de fato podia controlar: seu próprio corpo. Aos 11 anos, passa a se isolar em seu quarto. Ela se pesa várias vezes ao dia, religiosamente e, apesar de praticamente não comer, torna-se obcecada por sua alimentação. A anorexia faz com que Clara não sinta mais a passagem do tempo. Tudo o que importa é o lento processo de perda de peso, de sentir o relevo de seus ossos surgir sob a pele. Aos 15 anos, quando é finalmente hospitalizada, ela não pesa mais do que 29 quilos. “Êxtase” propõe um jogo de elipses em que o que não vemos torna-se tão importante quanto o que estamos vendo. O filme é baseado na experiência da própria diretora, que teve anorexia dos 11 aos 18 anos, e em relatos de outras mulheres que sofreram da mesma condição.
Direção: Moara Passoni
Título Original: Êxtase (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 15min
País: Brasil
Manifesto do Corpo
A pessoalidade é uma marca profunda em uma obra audiovisual. Porém, não tão incomum. Calejados por assistirmos dezenas de filmes semanalmente, em uma espécie de overdose cinematográfica que transformou o sofá das nossas casas em assentos dos maiores festivais brasileiros, é preciso muito para que um forte impacto nos faça parar. Não querer escrever, não assistir a um novo filme logo depois. “Êxtase” provoca essa sensação e uma que, talvez soe pieguice, mas é a mais pura verdade. Ao final da sessão, temos vontade de abraçar Clara, protagonista inspirada na vida da diretora Moara Passoni, em composição conjunta com outras histórias de mulheres que tiveram ou tem anorexia.
Desde logo, indicamos a leitura desta entrevista excepcional feita por Patricia Gomes quando do lançamento do filme no CPH:DOX (Festival de Documentários de Copenhagen) – em que a diretora destrincha muito bem todo o processo de realização. Se colocar a serviço da sua arte talvez seja uma expressão que denote um ofício muito mais mecânico do que toda a sensibilidade que transborda da obra, parte da Mostra Brasil da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Cumprir uma função pode ser outro termo que nos vincule a uma automação representativa.
A diretora, entretanto, constrói sua narrativa por uma dupla via intimista. Produtora e corroteirista de dois grandes sucessos de Petra Costa, “Olmo e a Gaivota” (2015) (codirigido por Lea Glob) e “Democracia em Vertigem” (2019), a narração é fundamental para o vínculo sensorial também em “Extase”. Só que Passoni potencializa esse expediente com uma construção de imagem que traça paralelos com a trajetória de vida – com direito a uma morte. Clara nasce, cresce, se estranha, se descobre, morre em um hospital e ressuscita em meio a um processo de redescoberta – e novamente ressuscita.
Um projeto que a diretora conta em seu agradecimento ao prêmio dado pela Abraccine ter demorado dez anos. Tempo em que Moara mergulhou no mundo acadêmico, de onde saiu socióloga, antropóloga, cientista política e mestra em teoria do documentário. Agora, indicado ao Oscar na categoria vinculada às suas pesquisas por outro tipo de Academia. É curioso que apenas após uma trajetória tão bem-sucedida, ela consiga levar “Êxtase” ao circuito de festivais e, como não deveria deixar de ser, merecidamente reconhecida. O que ela propõe como ponto de partida de sua obra é o resgate mais fundamental e primário do que entendemos por memória. Alia registros fotográficos, preciosos arquivos que agora dominam o fazer audiovisual com uma proposta de lembranças de uma menina.
Sendo assim, iniciamos a trajetória do longa-metragem em Jardim Ângela, bairro da zona sul de São Paulo. Uma câmera viajante, em uma das poucas sequências mais tradicionais no que tange à linguagem, passeia pelo cômodo e, antes de mostrar a criança na janela, deixa clara a militância da mãe com uma bandeira do MST (Movimento dos Sem Terra) e um santinho de uma antiga campanha de Lula na parede. Dali em diante, a cineasta nos entregará visões tal qual Clara processa em sua mente. A valorização de imagens, a turbidez de outras. Um mosaico sensorial costurado com uma coerência narrativa e uma poética inteligível. A menção à parceira de produções anteriores Petra Costa não deve soar como comparação e sim como vinculação estética. Mas temos aqui a mesma condução que equilibra os elementos estilizantes com a carga emotiva profunda. Um magnetismo que une deslumbramento e comoção.
Ao lado de Clara vamos refazendo seus passos. Memórias infantis se tornam questões adolescentes. Com um novo ciclo de vida, vem também a condição da anorexia. Passoni entrega aquelas que acredita ser relações de causa. O desenvolvimento de um moral cristã provocada pela educação formalmente católica ao lado da militância e da vida política progressista da mãe, deputada constituinte. As dificuldades de adaptação de um território hostil como Brasília (que talvez cheguemos à conclusão de ser inadaptável) no mesmo pé de sua relação com a casa onde mora.
É admirável a maneira como o documentário abarca todas as modalidades possíveis do choque (não apenas no sentido de abalar, mas no de criar conflito). Usa elementos do real e do ficcional, mas não os telegrafa nem os banaliza. Faz um prólogo falando de vida e um clímax onde mata a todos nós. Entrega uma defesa sobre liberdade e conhecimento sobre o próprio corpo. Parte do processo de autoconhecimento de Moara Passoni, sem dúvida, foi a própria realização de “Êxtase“. Ao tentar entender a si, ela nos entrega mais uma potente e inesquecível obra de arte.
Veja o Trailer:
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