Ficção Privada

Ficção Privada

Sinopse: Por vários dias e noites, um rapaz e uma moça leem as correspondências trocadas por Torcuato e Kamala (ele, argentino, ela, indiana), os pais do diretor. As cartas, escritas ao longo de décadas, entre os anos 1950 e 1970, relembram suas viagens e falam de amor e idealismo, mas também de dores e sonhos desfeitos. Ficção Privada é uma aventura íntima do século 20.
Direção: Andrés Di Tella
Título Original: Ficción Privada (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 25min
País: Argentina

Ficção Privada

Peculiaridades e Películas

O argentino “Ficção Privada” abriu a mostra competitiva internacional do 25º Festival É Tudo Verdade nos remetendo a um dos grandes destaques do 4º Festival Ecrã: o espanhol “Meu Pretzel Favorito“. Enquanto neste, a revisitação de um diário é encenada com um verniz histórico, aqui o diretor Andrés Di Tella tenta mensurar a força das palavras fazendo releituras das cartas de seus pais por um jovem casal.

Antes disso, uma prólogo em que transitamos por territórios semi desfocados, enquanto, no primeiro plano da imagem, fotografias antigas nos mostram como era aquele espaço. Nossa relação com os lugares é, de imediato, despertada. Aqueles que não vemos mais – ou que não reconhecemos. Distâncias que não conseguimos mais percorrer por força do fluxo natural da vida. Quando nos deparamos, aquilo que entendemos como lugar já não mais existe, desconfigurado ou destruído inapelavelmente. O longa-metragem, então, deixa no espectador a curiosidade por saber quais histórias existem por trás daquelas fotos.

O trabalho com a imagem e com arquivos privados (não necessariamente os próprios) seguem ampliando sua relevância no audiovisual das últimas décadas. Parece que, quanto mais ampliamos a capacidade de produzir mais imagens, maior a necessidade de revisitar o passado. O exercício de tentar adivinhar – ou, até mesmo, criar – uma biografia por trás de uma representação estática, é o alvo que Di Tella escolheu para aproximar o público de “Ficção Privada” com a sua própria história. Todavia, o debate é pertinente mesmo se extrapolarmos a experiência concreta da sessão do filme.

Mesmo no ambiente familiar, nunca compreendemos totalmente o outro. Revisitar a caixa de memórias de alguém, mesmo próximo, é lidar com essa dúvida. Por que aquela pessoa está marcada na foto? Como saber as motivações e os sentimentos por trás daquela imagem quando estamos diante de alguém que já se foi? Esses são alguns pontos verbalizados ao longo da primeira etapa da obra. Ao falarmos do curta-metragem “Ver a Vista“, de Daniel de Bem, mencionamos como essa projeção de memórias podem ser, na verdade, uma tentativa de reescrever o que foi vivido. Dar interpretações não percebidas quando os fatos ocorreram. Tudo isso como uma resposta a si, na busca por algo que nos conforta.

Andrés Di Tella, como pesquisador e curador de festivais como o BAFICI, é um mestre nessa arte de ressignificar um passado que só fazia sentido para uma pessoa. Inclusive, ele ofereceu uma masterclass antes do início da maratona de filmes do É Tudo Verdade falando como um caderno de anotações pode ser, na verdade, a própria arte que está se buscando. Na realidade transfigurada de seu curta-metragem, aqueles dois jovens representam Kamala e Torcuato, um argentino branco e uma indiana negra, que foram militantes socialistas no país dela. Imagens de arquivo da Índia da década de 1950 ajudam a compor o que a narração chama de “fábula do século XX”. Um casal que transita por Moscou, Londres e se estabelece na Argentina. Aqui o diretor parece compreender as dificuldades de adaptação de Kamala a Buenos Aires. Ele não partilha isso, mas podemos imaginar que no processo de criação de seu filme ele tenha encontrado algumas importantes respostas dentro de si.

Por sinal, a já mencionada narração contribui com a aura existencialista da produção, não bastasse a utilização dos pais como objeto de documentário. Se já não fosse o suficiente tratar da relação territorial, da ressignificação de imagens, trazer um panorama das tensões sociais vividas no século XX e suscitar a idealização da imagens que queremos ter, “Ficção Privada” ainda usa as cartas e diários como meios de comunicação fundamentais e que seguem, por outras vias tecnológicas, entre nós. Quando escrevemos ou criamos alguma conexão à distância com o outro, usamos formas de falar coisas que não costumamos fazer pessoalmente. Há vezes em que optamos por essa via para não criar conflitos, ter tempo para pergunta seguinte que lhe desmonta ou simplesmente evitar um olhar.

Como fazemos, então em uma situação como a que vivemos nos últimos meses, onde a distância passou a ser a regra? Em que, fazendo o exercício inverso do proposto pelo diretor, não podemos fazer valer do contato em nossas relações? A resposta é diferente para cada um de nós. Tem os que gostaram, os que se deprimiram e os que desrespeitaram a regra. Fazer filmes tal qual Andrés Di Tella faz também é uma forma de representar o que não se mostraria pessoalmente. E é por isso que o cinema, mesmo sem nossa comunhão em uma sala, segue existindo.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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