Sinopse: Noa conhece o sedutor Steve em um supermercado e, dada sua frustração com aplicativos de namoro, se arrisca e lhe dá seu número. Após o primeiro encontro, Noa se apaixona e aceita o convite de Steve para uma escapadela romântica de fim de semana, apenas para descobrir que seu novo amante esconde alguns apetites incomuns.
Direção: Mimi Cave
Título Original: Fresh (2022)
Gênero: Thriller | Horror
Duração: 1h 54min
País: EUA
Sweeney Grey
Um raro filme “para maiores” no catálogo family friendly do grupo Disney, a produção norte-americana “Fresh” debutou no Festival de Sundance de 2022 e está, há algumas semanas, disponível no Brasil no catálogo do Star+ (aliás, um benefício para os países nos quais o Hulu não se estabeleceu, já que seriam três serviços de streaming da mesma empresa na nossa folha de pagamento). A estreia de Mimi Cave na direção traz a história de uma jovem que, tomada por uma paixão repentina, acaba entrando em uma furada com toques de violência e requintes de crueldade.
Sim, o reducionismo que encerra o parágrafo anterior é de propósito, para te fazer lembrar daqueles thrillers que aportavam na nossa TV no sábado à noite. Seja nas faixas de filmes da TV aberta ou na programação dos canais a cabo. Não por coincidência, foi em uma idêntica noite, talvez a única que o povo assalariado consegue esticar sua programação, que adentrei a madrugada para me assombrar com o longa-metragem “polêmico” e “assombroso” da última semana.
O roteiro de Lauryn Kahn possui um elemento que fez lembrar, de imediato, a obra assistida na véspera (e a segunda crítica mais recente da Apostila de Cinema, o francês “Ligações Perigosas“). Aqui a protagonista Noa (Daisy Edgar-Jones) também é apresentada como uma mulher que não se encaixa nas dinâmicas sociais atuais, pautadas nos elementos virtualizados. Se na releitura do clássico da Literatura temos uma jovem que opta por não possuir perfis nas redes, aqui há alguém mais maduro, que entendeu que precisa se deixar cooptar pelo sistema por questão de sobrevivência (amorosa ou sexual).
Sendo assim, em “Fresh” a personagem busca relacionamentos (furtivos ou duradouros) da mesma forma que boa parte da população na sua faixa de idade: pelo Tinder. Todavia, em descrédito com esse sistema, ela se torna bem mais vulnerável a quem aparece do lado de fora. Este outro alguém é Steve (Sebastian Stan) um homem “misterioso” (para usar o jargão do narrador do Supercine) que a aborda em um supermercado como alguém que foge dessa lógica da paixão via aplicativo. Ela, claro, se envolverá com ele.
Cave e Kahn não articulam tanto os reflexos de uma sociedade misógina nesta produção como já vimos em outra oportunidade. Podemos citar a versão mais recente de “O Homem Invisível” (2020) de Leigh Whannell como exemplo onde terror e horror se misturam, já que as tintas do real e do que surge na tela como extraordinário se fundem. Em “Fresh” o caminho é bem parecido, de certa forma alcançado, mas em potência menor. A ideia de colocar o título e os créditos de abertura com mais de trinta minutos de história, transformando todo o primeiro ato quase em um prólogo, pode dar a entender de que encontraríamos a partir dali uma narrativa de confinamento.
Este ponto é um grande acerto da diretora. Depois que o cirurgião plástico “de reconstrução” Steve migra de um discípulo de Christian Grey para uma versão contemporânea de Sweeney Todd, poderíamos trafegar pela fórmula desgastada de observar Noa lutando por sobrevivência em um quarto. Seu objetivo continua sendo não ser esquartejada viva para que sua carne seja vendida para ricaços excêntricos que pagam pequenas fortunas por uma experiência canibal. Esse agentes não ganham a tela, mas o roteiro complexifica as relações, insere uma amiga da jovem em busca de resposta e uma esposa para o mais novo psicopata americano, na cena de maior impacto visual – mesmo não sendo a mais apelativa em relação à violência.
Em comum, a ideia de pluralizar o protagonismo feminino e mostrar como, em certa medida, todas elas são vítimas não apenas de Steve, mas de diversos outros homens e suas múltiplas formas de ataque. Mesmo não articulando tão bem essas ideias, ainda assim há leituras interessantes a serem extraídas. Na principal delas, a forma como Noa absorve o sentimento de culpa, mesmo em situação-limite. Um comportamento reflexo de uma sociedade que joga a responsabilidade de quase todas as consequências em atos (ou supostas omissões) das mulheres.
Sendo assim, “Fresh” nos mantém conectados nessas duas frentes: a transformação psicológica e de entendimento do que precisa fazer para virar o jogo da protagonista, ao mesmo tempo em que não foge da estética do horror tão importante para fixar parte das mensagens dessas obras na nossa mente. Ainda há espaço para o humor involuntário, com direito a clássicos ianques bregas dos anos 1980 como Duran Duran e Richard Marx, se misturando ao ritmo e discurso potentes de Karen O e o Yeah Yeah Yeahs, denotando certo domínio e fidelidade ao subgênero escolhido por Mimi Cave. Pode não ser tão polêmico ou assombroso assim, mas não chega a amargar a noite de sábado do assalariado que tomou uma dose extra de café (sem açúcar) para aguentar mais um filme sem dormir.
Veja o Trailer: