Sinopse: O documentário mergulha nos anos em que o cineasta Glauber Rocha (1939-1981) esteve exilado na Itália, entre 1970 e 1976. Por meio de memórias de amigos, parentes, colegas e colaboradores, o filme retrata a vida e a obra de Glauber na época, além de revisitar seu penúltimo longa-metragem, Claro (1975), gravado em Roma. A produção investiga a experiência do cineasta e de outros artistas na Itália da década de 70 e aborda diversos temas, como o Cinema Novo, o cinema underground, o neorrealismo e a militância política.
Direção: Cesar Meneghetti
Título Original: Glauber, Claro (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 20min
País: Brasil
A Glauber o que é de Glauber
Quando mais nos aprofundamos na areia movediça totalitária protofascista brasileira, mais Glauber Rocha ressurge. Como uma fênix, é difícil acreditar que ele não esteja presente. Os últimos anos trouxe consigo mais do que as inspirações e os filhos (biológicos, de consideração ou artísticos) do cineasta. Estamos reescrevendo sua história com uma filmografia que revista fases e obras de sua carreira, como “Glauber, Claro“. O 9º Olhar de Cinema, por exemplo, foi encerrado por Antena da Raça“. Agora, na Mostra Brasil da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o diretor Cesar Meneghetti foca na produção de “Claro”, penúltimo longa-metragem do realizador baiano, lançado no Festival de Veneza de 1975.
Ainda não foi possível escrever sobre o documentário de Paloma Rocha, no turbilhão de filmes dos festivais que se sucedem. Porém, podemos antecipar que lá chamou nossa atenção a retórica envolvente de Glauber – e como o passar do tempo só lhe deu mais conhecimento, consciência e um discurso aprimorado. O cineasta passou longe da canalhice da idade, foram 42 anos de serviços prestados a uma nação pouco disposta a ouvi-lo. Aqui temos uma interessante ponte de saberes. Em “Claro” ele aplicou seu olhar crítico sobre a milenar capital eurocentrista. Um César bolivariano, Glauber Rocha em Roma possibilitou um terremoto de escala incomensurável na história do cinema. Ciente disso, ele faz uma obra que não merece ser esquecida em uma filmografia tão significativa quanto a dele.
Se Paloma não se esquivou de traçar paralelos do Brasil de meados dos anos 1960 com o espiral de bosta (na falta de definição mais educada) no qual nos metemos nos últimos anos, Meneghetti é quase tão tradicional na abordagem – com uma poesia de pano de fundo. São dois documentários fundamentais por alinhar uma mistura de didática, pesquisa, descoberta e revisitação. Uma amplitude de público difícil de conquistar, por necessitar de uma montagem democratizante. Várias visões e leituras possíveis, sem uma linguagem atravessada ou mitificada. Com isso, alguém interessado em cinema ou em uma boa história envolvendo essa arte, extrai muito de “Glauber, Claro“. Ao mesmo tempo que os amantes mais fervorosos de seu trabalho – e, principalmente, os críticos – se sentirão recompensados pela experiência.
São tantas odes a este realizador que se torna difícil equilibrar problematizações. Questões que nunca consegui trazer para a Apostila de Cinema por ser este um espaço ainda em construção. Mas, antes de trazer posicionamentos, já foi possível revê-los. Analisar Glauber Rocha em um laboratório, isolando “Idade da Terra” (1980), “Terra em Transe” (1967) ou “Claro” (1975) em tubos de ensaio perdeu o sentido em nossa realidade. É admirável observar que ele é um artista que se reinventa, se atualiza – mesmo tendo nos deixado há quase quarenta anos.
Cesar sabe que a guerra que ele declarou se mostra uma batalha ganha – dá a Glauber o que é de Glauber. Reúne profissionais que trabalharam na produção do filme experimental de 1975 para atingir uma revisão crítica, que se torna naturalmente uma homenagem. Todavia, rediscutir Glauber é um fronte sanguinolento porque ele fatalmente tomará as rédeas do debate. Qualquer manifestação do realizador por imagens de arquivo acabará se sobrepondo às histórias de bastidores que aqueles senhores e senhoras tão generosamente compartilham. Mario Giani, diretor de fotografia, saca algumas bonitas fotografias históricas do período. Juliet Berto, falecida em 1990, traça um paralelo entre o auge da nouvelle vague e o vanguardismo mais pungente, que tomou de assalto os grandes festivais de cinema da década de 1970 sem o devido reconhecimento.
Parecia que “Glauber, Claro” nos cansaria, com mais vinte minutos de depoimentos que talvez não se sustentassem posto que Meneghetti já havia extraído da obra original tudo o que era possível. O reinado de Cesar como libertador e salvador da alma de um dos diretores brasileiros mais fundamentais da história parecia não ter força. É quando ele abre espaço para Glauber concluir seu próprio filme. Um homem que se recusava a ser normal, que em 1975 gritava de dor e revolta pela incompreensão de um trabalho que fazia uma leitura de sociedade, de consequências da colonização, de falência moral e de enterro da sociedade do espetáculo como fenômeno formador. Em 2020, ainda não compreendemos. Parecia, até, que abandonaríamos essa missão. Afinal, são filmes de quase meio século. Até que a rotação do país se inverte e precisamos evocar o espírito de uma rocha que, cansada de tanta ignorância, construiu um império para si mesmo.
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