Golpe Corporativo

Golpe Corporativo

Sinopse: “Donald Trump não é a doença, é o sintoma”. O filme narra a história por trás do “golpe corporativo” que se deu muito antes das últimas eleições. Tal golpe seria a origem de muitos dos problemas na democracia atual, controlada por lobistas e pelo corporativismo. Acompanhamos as consequências desastrosas para os mais vulneráveis da sociedade, incluindo residentes das chamadas “zonas de sacrifício”, como o Cinturão da Ferrugem nos EUA, onde a indústria do aço já foi muito próspera, mas que hoje sofre com o fechamento de fábricas e a terceirização. O filme capta ainda histórias devastadoras dos moradores de Camden, na Nova Jersey, que vêm sofrendo os efeitos de ideologias e políticas neoliberais, globalistas e corporativistas.
Direção: Fred Peabody
Título Original: The Corporate Coup d’État (2018)
Duração: 1h 30min
Gênero: Documentário
País: Canadá | EUA

Golpe Corporativo

Não Leia!

Golpe Corporativo” mergulha nas entranhas da política dos Estados Unidos para materializar as idéias do filósofo canadense contemporâneo John Ralston Saul. Para ele, estamos testemunhando o fim da grande democracia norte-americana, a partir do entendimento da classe empresária de que, como disse o Presidente do Brasil em uma antiga entrevista, “com o voto não se resolve nada”. Trata-se de um golpe de Estado em câmera lenta, que remonta às políticas do governo de Ronald Reagan ainda na década de 1980. O cineasta Fred Peabody tenta, então, construir as pontes para demonstrar como esse processo gradual vem ocorrendo e até mesmo a relevância da alternância de poder entre republicanos e democratas.

Entender que Donald Trump é o sintoma e não a doença – como a sinopse do documentário destaca – é fundamental para que a visão crítica sobre a sociedade estadunidense se desenvolva. Como opção de montagem, o filme traz o racismo e o machismo, molas propulsoras do reacionarismo do país, apenas no terço final – focando a jornada nas atuações dos governantes e lobistas. O primeiro destaque do longa-metragem é a crise laboral e de produção dos Estados Unidos. Como exemplos de laboratório, Peabody nos apresenta as regiões de Camden (em Nova Jersey) e Youngstown (em Ohio). Dois territórios que concentravam pólos industriais e importantes portos e que, com as decisões das últimas décadas, se tornaram o reflexo do aumento da desigualdade social na nação mais rica do planeta.

Enquanto “Golpe Corporativo” é muito assertivo nas representações da miséria que assola parte da população dos Estados Unidos, traz em paralelo as táticas de Trump para a guinada autoritária do Estado. Desregulamentação no Legislativo e promoção de liberais na Suprema Corte no Judiciário. O Ocidente parece ter cansado da tripartição de poderes e do sistema de freios e contrapesos. Cada vez mais identificamos maneiras dos chefes do Executivo eleitos se comportarem como líderes máximos – sem que as outras instituições reajam. Ou, quando atuam, é em total consonância com os interesses desse espectro político.

Aqui chegamos no ponto que nos toca mais diretamente no filme. É inevitável a comparação e o mini-imperialismo praticado pelo Brasil na América Latina o torna um espelho dos Estados Unidos no hemisfério sul. Em 7 de setembro de 2017, no auge da operação Lava Jato, chegava aos cinemas brasileiros “Polícia Federal: A Lei é Para Todos“, uma produção que até hoje tem financiadores anônimos. Recebi um convite para assistir ao filme (ao qual fui, como nunca deixarei de ir) e, nas conversas sobre ele, sempre entendi que o Poder Judiciário no país teria um peso nunca antes visto nos anos seguintes. Passados exatos três anos, resta comprovada a influência da atuação da Justiça na organização política do Brasil – um processo que segue em curso. A pandemia de coronavírus fez muitos esquecerem que, em menos de dois meses, teremos eleições municipais – e as operações voltam a ganhar as manchetes e afetar diretamente a democracia.

Aqui no país temos um líder muito parecido com Donald Trump em suas táticas de poder. Principalmente no uso das redes sociais para a desinformação e na vulgaridade do discurso (palavra usada no próprio filme). Os dois foram eleitos sob as desculpas de serem o “menos pior” ou “mal necessário” – em que a alternativa seria um proto comunismo que ninguém da direita até hoje conseguiu fundamentar sem se valer de fake news. Na prática, as propostas dos democratas não se encaixavam nos anseios da população em 2016 – e talvez não se encaixem agora em 2020, quando o Agente Laranja tentará a reeleição. “Golpe Corporativo“, então, nos conclama a olhar para dois grandes pilares da sociedade capitalista. O primeiro é o mercado financeiro. Após traçar comparações entre as falas de Trump e as ideias do fascista Benito Mussolini (ele podemos rotular de fascista, creio eu), fica claro que a burguesia não se preocupa com a guinada à extrema direita contanto que o gráfico de lucros siga em alta.

Curioso que, sob o manto do patriotismo, os Estados Unidos vê seu povo trabalhador cada vez pior. Voltando aos pólos industriais destruídos, muito da responsabilidade pode ser creditada à criação da Nafta (área de livre comércio entre o país, Canadá e México), que migrou grande parte da cadeia produtiva para as nações vizinhas – acordo gestado e assinado pelo democrata Bill Clinton. Em nosso texto sobre “A Nova Era do Petróleo” (2018), também exibido na Mostra Ecofalante trouxemos o quanto Barack Obama foi fundamental para o lobby das indústrias de petróleo, revogando leis que protegiam a indústria norte-americana há quarenta anos.

O outro ponto que “Golpe Corporativo” toca é na atuação da imprensa. E aqui temos a grande instituição capaz de chancelar ou evitar a tragédia neofascista que estamos contemplando no horizonte. Comprar o discurso de #GloboLixo por ser o meme da vez não contribui se não entendermos que, parte da engrenagem de poder que manterá Trump, Bolsonaro e seus discípulos no poder por décadas, não tenha na destruição de uma mídia livre uma parte importante. Apoiar a produção de conteúdo independente é primordial, mas olhar atentamente as movimentações das empresas gigantes do ramo também o é. Por enquanto, o discurso econômico ainda é comprado, alinhando a mídia hegemônica ao mercado financeiro e, mesmo que indiretamente, às políticas de Estado. Resta saber até quando.

O terço final do documentário é um dos destaques do festival até agora. Em um bar inaugurado na década de 1970 em homenagem a Kennedy, os cabos eleitorais de Trump se reúnem no dia das eleições regionais de 2018. Ali eles são questionados sobre suas escolhas políticas e o diretor Fred Peabody revela que o entrevistador é um jovem negro. O racismo estrutural transita pelas repostas sem que aquelas pessoas entendam a reprodução dos erros do passado. Além de John Ralston Saul, “Golpe Corporativo” conta com a contribuição em testemunhos de outro filósofo, Cornwel West. Quando toca no combate ao racismo como parte importante das novas dinâmicas sociais que se impõem nos Estados Unidos, o filme fala de um gargalo cada vez maior: a leitura. Além de Saul e West, Noam Chomsky é citado. Muitos conhecem esses nomes, mas quase ninguém os lê.

O hábito de se informar foi terceirizado e isso tem gerado consequências muito graves em nossa rotina. Inclusive, acredito que seja quase impossível alguém chegar ao final de um texto – hoje em dia – considerado tão longo quanto este. Ele não faria diferença, mas muitos outros sim e também não serão lidos. Quando abrirmos os olhos, talvez seja tarde demais.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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