Sinopse: Em “Guia Romântico para Lugares Perdidos”, dois estranhos, ambos presos numa vida de mentiras, partem juntos numa extraordinária viagem pela Europa explorando lugares esquecidos, enquanto se reconciliam com os seus próprios passados.
Direção: Giorgia Farina
Título Original: Guida romantica a posti perduti (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 46min
País: Itália
Desamadurecimento
Chegando aos cinemas neste final de semana “Guia Romântico para Lugares Perdidos” reúne atores populares do cinema italiano ao lado de dois rostos marcantes do audiovisual europeu nas duas últimas décadas. Porém, ao invés de se debruçar sobre as escolhas do elenco e da diretora e roteirista romana Giorgia Farina, vale a reflexão sobre uma temática que parece se multiplicar indefinidamente nas produções do continente.
Há muito a arte usa a narrativa clássica para falar de amadurecimento, usando momentos agudos nos quais encruzilhadas ou crises existenciais de seus protagonistas lapidam a ideia de que os anos dourados ficaram para trás. Uma fórmula que ainda permite boas obras, mudando perspectivas dos personagens sob vários aspectos: temporais, históricos, sociais, geográficos, dentre outros. Esta semana, por exemplo, publicamos aqui sobre um ótimo exemplo de coming of age que chegou no Amazon Prime Video, “Emergência” (2022).
Porém, cada vez mais ganha espaço – e talvez já exista classificações e mapeamento sobre canonizações e simbologias vinculadas – as narrativas que exploram a adolescência tardia ou a fuga natural do ser contemporâneo, entulhado de informações e consumido por sua ansiedade e pânico. Em maior ou menor grau, essa rebeldia intimista, quase sempre reservando a protagonistas de meia-idade formas de extravasar (mesmo que contidas ou particulares) vai se revelando uma trama cada vez mais comum.
As origens também permitem uma pluralidade de formas de expressar esse descontentamento com a realidade, uma frustração porque o futuro chegou e a vida adulta está longe de ser o que o nossos pais, o discurso meritocrático e o Cinema nos prometeu quando éramos adolescentes. O que nunca saberei, de fato, é como Clive Owen e Irène Jacob (essa de tão poucos trabalhos nos últimos anos após se tornar a cara do cinema de Krzysztof Kieslowski) foram convencidos, o que leva a crer que esse tipo de trama de “desamadurecimento” pode ser uma demanda também de atores que querem um fazer artístico fora das histórias edificantes.
“Guia Romântico para Lugares Perdidos“, então, possui um ritmo muito particular. Assume a narrativa clássica, usa os tais rostos conhecidos para evocar um tradicionalismo e atrair público – mas insiste na cadência de um drama em que as descobertas e transformações ocorrem em pequenos gestos. Jasmine Trinca é Allegra, uma mulher que usa o trabalho como blogueira de viagens para evitar o próprio relacionamento com Michele (Andrea Carpenzano). Os dois atores participaram de produções bem-sucedidas de público e crítica na Itália, tais como “Euforia” (2018) e “Desafio de um Campeão” (2019).
Até que, um dia, Benno (Clive Owen) cruza o caminho daquela mulher. Um britânico que mora há seis anos em outro país e mal fala o idioma. A barreira linguística é a desculpa para eles iniciarem ali uma relação conturbada, que se transforma em um convite dela para que façam uma viagem para o interior. O homem tem uma personalidade profissional bem particular: ensina (porque hoje não basta se expressar, precisa colocar em perspectiva e lecionar de forma sistematizada tudo) como não deixar o fim da paixão transformar o amor em desencanto. Talvez esse seja o ponto de virada da vida de Allegra.
Porém, ao contrário de exercitar seu domínio enquanto coach, Benno se deixa ser um agente passivo na realidade da nova amiga. O vício em álcool está fazendo sua existência cair em desgraça. Em crise com a esposa, Brigitte (Irène Jabob), está a um passo da cirrose hemorrágica, com lapsos de memória e sentindo a vida lhe escapar sem que pudesse encontrar a plenitude que vende aos clientes. O ato inaugural do longa-metragem é extenso, melancólico, demora a preparar as engrenagens para um road movie de baixa intensidade.
A caminho de San Vittorino, a protagonista precisa lidar com suas crises de pânico enquanto Benno se afunda, de vez, na bebida. Farina promove uma obra que não permite ao público enxergar perspectivas, transforma tudo (não apenas o amor) em desencanto. Faz com que os personagens reflitam sobre suas origens a ponto de vincular aqueles anos dourados que mencionamos no início do texto em uma forma de existir insuperável. Em tempos dominado por uma forma distanciada ao nos relacionar com o outro, a ideia de que somos uma farsa é comum a boa parte de nós.
Isso permite, claro, criar identificações e conexões diretas com Allegra e Benno (e seu cachorro, que parece surgir como uma muleta narrativa que brinca com esse clichê audiovisual, posto que subarproveitado). O próprio nome da personagem de Trinca é um pequeno deboche identificado pela forma irônica de Owen se portar. Ser chamado de alegre é quase como o reconhecimento de que você vive em uma realidade paralela. Parece que o mundo nos impõe absorver todos os problemas, não restando espaço para transbordar vida. Sempre há objetivos maiores, o que faz com que o fim (ou a finalidade) seja a morte.
Há espaço, também, para falar do próprio exercício crítico, na cena mais interessante do filme. Allegra precisa escrever sobre o hotel onde ficará e já começa a produzir o texto dentro no carro, no caminho para a cidade. Ao ser questionada por Benno, ela diz que tanta gente já escreveu sobre o assunto em sites de avaliações, que ela pode transformar sua redação em um pequeno Frankenstein de argumentos desconexos. Aqui está outro ponto de nossa triste existência contemporânea. Na busca constante por novidades, por experiências únicas e por fazer com que cada dia valha a pena; parece que nada na nossa vida possui o mesmo frescor da vida do outro, sistematicamente pensada como uma lista de stories da Boca Rosa.
Ou na solução tão fácil, simples (e totalmente gratuita) que passa pela mudança ou um rebranding de nós mesmos a partir das palavras de um coach qualquer. No interior da Itália, encontramos cidades cada vez mais vazias, espaços abandonados, vidas em suspensão. Enquanto o virtual nos consome, o real a nossa volta parece necessitar sempre de manutenção.
“Guia Romântico para Lugares Perdidos” contraria um pouco o que se espera no gênero em que se insere. Temos personagens sem disposição para a mudança, em uma infelicidade conformada. Resignados, entregues ao alcoolismo e à ansiedade. Vivendo “apesar de”. Encontram subterfúgio no resgate da adolescência, naquele dia que só importa colocar a camisa da banda favorita e extravasar na pista. Nunca saberemos o tempo no qual Allegra e Benno se valerão desse imaginário saudosista para conseguirem respirar. Nós chegamos ao fim depois de uma viagem pela melancolia e a desgraça, aceitando como clímax uma dancinha desengonçada com um amigo, tirando prazer no audiovisual indie contemporâneo que nos faz rir da nossa desgraça.
Veja o Trailer: