Sinopse: Uma linha geopolítica improvável entre a pequena aldeia húngara de Nagyvárad e a Terra Indígena Yanomami, na Amazônia brasileira. Judia, sobrevivente da Segunda Guerra, Claudia Andujar exilou-se no Brasil e dedicou a vida à salvaguarda dos povos Yanomami. Seu valioso acervo, sua militância incansável, seu passado de guerra e a vulnerabilidade atual dos indígenas são revistos por meio de diálogos de Andujar com o xamã Davi Kopenawa e o ativista Carlo Zacquini, com a interlocução do filósofo húngaro Peter Pál Pelbart.
Direção: Mariana Lacerda
Título Original: Gyuri (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 28min
País: Brasil
Tempo, Imagens e Amor
O pavilhão de Claudia Andujar em Inhotim é um dos mais singelos e bonitos. A estrutura planejada para a exposição permanente trabalha com a iluminação em um jogo de sobreposições e frestas de luz que se assemelham à própria obra da homenageada.
Em “Gyuri” (exibido fora de competição no Festival É Tudo Verdade do ano passado e assistido pela Apostila de Cinema na programação do Festival Cajubi) a diretora recifense Mariana Lacerda também opta por trazer contrastes e um tempo distendido e alongado, ora difuso, ora muito bem delineado. A ideia de deixar-se perder na imagem pode ser, então, trazida também para a fruição do documentário. Não à toa o interlocutor escolhido é o filósofo Peter Pál Perbalt.
Perbalt elabora a partir de conceitos deleuzianos uma teoria sobre a percepção artística, desenvolveu um belo trabalho à frente da Cia Teatral Ueinzz – iniciativa que merece ser sempre citada e revisitada – e tem em sua trajetória um longo percurso com a imagem e a construção de narrativas outras advindas de um pensamento temporal que coloca em jogo não somente o tempo cronológico, mas principalmente aquilo que Gilles Deleuze chama de aion, o tempo dos sentidos.
Sem desenvolver a teoria deleuziana aqui, indicamos os já clássicos dois livros sobre cinema do filósofo – “Imagem Movimento” (1983) e “Imagem Tempo” (1985) e um livro do próprio Peter, “Tempo Não-reconciliado” (2007). Pode parecer estranho que tantas referências apareçam antes mesmo de começarmos a falar sobre Andujar, mas me parece que o documentário não é exatamente sobre a trajetória pessoal ou profissional da artista, mas sobre o que sua obra provoca em nós. Nesse sentido, Lacerda acompanha a temporalidade criada nas fotografias de Andujar.
A fotógrafa suíça foi para Hungria ainda criança e, a partir da década de 70 começou a construir laços com a região amazônica do Brasil e com os yanomamis que duram até hoje. “Gyuri” se mostra muito inteligente ao apresentar dois momentos distintos na vida de Andujar. Em um primeiro momento, vemos Claudia acompanhada de Peter narrar histórias de seu passado. Instigada pela memória de tempos difíceis- lembrando que Andujar é judia e vivenciou a Segunda Guerra-acompanhamos a formação da menina, até chegar ao amor da adulta pelo povo yanomami. De maneira completamente distinta, Perbalt e o xamã Davi Kopenawa, hoje amigo de Claudia, provocam sentimentos na fotógrafa – e em nós- revelando a complexidade de sua vida e sua obra.
Em uma das sequências, já no meio da floresta, Kopenawa diz a Claudia que muitos fotógrafos desrespeitam a cultura indígena e exploram seus corpos em uma relação sem troca. Essa ,aliás, é uma reclamação recorrente. Há aqueles que vão, produzem seus trabalhos e não se importam em compreender ou fazer com que as pessoas que aparecem em suas imagens sejam tratadas como tal e , não somente como objeto de uma obra. Andujar, desde a década de 1970 , desenvolveu um trabalho sensível e afetuoso procurando respeitar a diferença que existia entre a cultura que a construiu e a yanomami. Suas fotos são também pedaços de tempo registrados que vivem para além daquele instante, pois constitutivos de um intenso aprendizado de amor. Um pouco como a imagem desgastada que nos apresenta logo no início do documentário. Algumas coisas permanecem, como a mesma diz.
Envolvida por um lugar que a recebeu como “sendo uma pessoa da floresta” – momento emocionante do filme no qual Kopenawa reconhece Claudia como uma parceira- lutou pela demarcação das terras yanomamis na década de 90. O trabalho de Claudia Andujar explode para além das imagens que permanecerão. “Gyuri” é um bom momento para partilharmos a experiência de um outro tempo (e um outro espaço) revelados por essas imagens. Ótimo começo para o Festival Cajubi que, em apenas três dias, promete muita reflexão com a programação escolhida.