Sinopse: Hamilton é um musical que conta a história da América por vozes americanas. Por meio da história de um dos principais fundadores americanos e primeiro secretário do Tesouro, Alexander Hamilton, a trilha sonora que mistura hip-hop, jazz, R&B e Broadway revoluciona o teatro no The Richard Rodgers Theatre, na Broadway, em junho de 2016.
Direção: Thomas Kail
Título Original: Hamilton (2020)
Gênero: Musical | Biografia | História
Duração: 2h 40min
País: EUA
Broadway-ragem
Antes mesmo de “Hamilton” chegar ao serviço de streaming Disney+ (e uma confissão rápida: foi a única coisa que assisti nele ao lado de “Soul: Uma Aventura com Alma“) a produção fez um grande barulho na indústria. Barulho esse potencializado com as indicações ao Globo de Ouro 2021. Afinal: “Hamilton” é Cinema? Um debate que antecipamos um pouco em nossa crítica de “Monster Hunter” (2020), novo pack de explosões em profusão lançado por Paul W.S. Anderson no Brasil semana passada. O que torna um produto audiovisual cinema? E há sentido essa rotulação?
Não, não faz qualquer sentido. Principalmente quando chegamos perto de completar um ano em que (a parte precavida da sociedade) estamos impossibilitados da catarse coletiva que é assistir a uma obra na sala escura. Por sinal, o musical dirigido por Thomas Kail seria um programa e tanto – bem melhor que muita coisa que o estúdio tem levado ao circuito nos últimos anos. O que não elimina uma discussão importante que fica batendo em nossas cabeças (em conjunto com as músicas espetaculares) ao longo das quase três horas: há uma abdicação do uso de ferramentas da linguagem cinematográfica.
Pensado como um registro de um dos grandes fenômenos de todos os tempos na Broadway, teve custo de dez milhões quando de sua gravação em 2016. A ideia era engavetar e ser lançado de forma independente. Porém, a Disney pagou 75 milhões para adquirir o material, o que garantiu o lucro e aumentou a força da criação de Lin-Manuel Miranda. A pandemia não permitiu o lançamento nas salas de cinema, o que talvez garantisse uma bilheteria fora do padrão para o gênero, que segue em decadência. Porém, sua chegada agrada um público que foge do alvo inicial da Disney+. O problema é que o Brasil demorou meses para ter acesso às legendas do filme. Isso talvez se justifique porque a tradução que geralmente é feita em musicais – alterando um pouco as letras para criar rimas no novo idioma – se revelou impossível aqui. Menos mal que isso não foi empregado, o que vem ocorrendo na Netflix, que desvirtuou totalmente as letras de algumas canções de “A Caminho da Lua“, por exemplo.
Vale a pena se colocar como advogado do diabo aqui e lembrar que outras adaptações da Broadway, como “Rent: Os Boêmios” (2005) e o famigerado “Cats” (2019) tentaram transpor parte da aura do espetáculo teatral, replicar canções e falharam miseravelmente. Não conseguiram fugir de uma abordagem genérica (ou, infelizmente, tosca) – seja com uma mise-en-scène incipiente ou com efeitos e maquiagens constrangedores. O exercício do imponderável sempre nos deixará em dúvida sobre o que seria de “Hamilton” se resgatasse essas mesmas propostas estéticas. Por outro lado, o filme passa longe de nos prover uma experiência inovadora, uma imersão enquanto público de uma noite em uma das ruas mais famosas de Nova Iorque.
Kail capta a apresentação única, sem cortes, do talentoso elenco – liderado por Miranda no papel de sua vida, ele que também escreveu e produziu o espetáculo-filme. Todavia, o cineasta se vale da pluralidade de câmeras, de enquadramentos que nos aproximam dos personagens e movimentações que telegrafam intenções, limitam nosso olhar para pontos fundamentais de entendimento. Princípios que o audiovisual atinge e que, quando saímos de casa para assistir a um espetáculo de artes cênicas, jamais teremos. Em paralelo, o longa-metragem mantém as reações da plateia com palmas e risos e evita qualquer reconfiguração do som.
Não há purismo que se sustente quando lembramos que há Cinema em filmes sem cenário – ou em cenário único; há Cinema emulando teatro com aplicação de gags e simulando interação de espectadores (quem garante que todas as que ocorrem em “Hamilton” são reais?); e há Cinema em cima de tablado. Ora, o que não eram os musicais da Era de Ouro de Hollywood senão uma peça encenada algumas vezes para a escolha do melhor corte? Nem eram muitas, não esqueçam o custo de produção em película na década de 1930, por exemplo. Os cenários nada mais eram do que alguns panos pintados e o chão, quase sempre gritando na tela, era apenas um tablado.
Foram três dias de gravação, já que as imagens captadas em câmeras de mão, próximo dos atores, foram feitas em uma sessão sem plateia, claro. A análise de apenas um número, “The Schuyler Sisters“, é o suficiente para ver que as escolhas da direção já nos intermediam uma imagem que não pode ser taxado pejorativamente de “teatro filmado”:
Ultrapassada a defesa de “Hamilton” enquanto produto audiovisual chancelado pelas amarras das definições e rotulações (até porque se seguirmos a lógica do “então um show captando com várias câmeras é Cinema?, não sairemos nunca disso), vale mencionar que o filme é, de fato, um espetáculo. Atualizando a narrativa sobre as mudanças políticas do final do século XVIII nos Estados Unidos e atualizando o próprio gênero, com canções de pegada pop, R&B, hip hop e raps – entoados e em batalhas. Enquanto agente colonizador, essa produção norte-americana é uma das mais inspiradas em muito tempo. Envolve o espectador para reiterar a imagem mitológica de George Washington (Chris Jackson) e Thomas Jefferson (Daveed Diggs) enquanto heróis do sonho americano.
Alexander Hamilton é o pai da burguesia do país, fundador do primeiro banco da América. Parte de uma engrenagem que une o descontentamento com a subordinação à Coroa Britânica com os movimentos revolucionários franceses. O intercâmbio de conhecimento e táticas se firmou de maneira que ergueria aquela colônia ao status de potência econômica rapidamente. Aqui está mais um mérito do musical, que consegue expor momentos fundamentais daquela jornada, tanto nas articulações políticas quanto nas guerras. Fatalmente a adaptação a preceitos mais tradicionais do audiovisual tornariam o filme over, a decisão parece acertada no final das contas. Há alguns dias comentamos em nossa crítica de “As Falsas Confidências” sobre a dupla jornada de elenco e equipe – que encenava a peça em um teatro de Paris à noite e gravava as cenas do filme durante o dia.
A complexidade de elementos tornaria essa dobradinha impossível – e exigiria um custo de produção que tornaria “Hamilton” um longa-metragem carregado de responsabilidade e com grandes chances de ser um fracasso retumbante. O musical é daqueles que merece algumas revisitações. A trilha composta por Lin-Manuel Miranda é sublime, grudenta – entre a sessão de domingo e o momento em que escrevia esse texto ela foi ouvida duas vezes em três dias. Cada número merece longos comentários, as caracterizações do Marquês de La Fayette (o mesmo Daveed Diggs que faz Jefferson, propositalmente), a chegada triunfante do próprio Jefferson no início da segunda parte – e sua batalha com o protagonista – as visões de John Adams, o Bill of Rights e a ideia de que estávamos presenciando uma “ascensão dos pobres”… Ainda há muito a ser dito e acredito que não encerramos com essa crítica.
Não soa tão bem a estereotipização um tanto homofóbica do Rei George (Jonathan Groff), apesar de sua trilha ser uma emulação dos Beatles soar genial. Aliás, o que é inegável é que o filme é carregado de uma genialidade colonizante. Trata da ascensão burguesa e das bases fundantes da sociedade norte-americana com uma leveza que nem Regina Duarte com sua blusinha rosa consegue atingir. Nas últimas vezes em que os tablados foram grandes elementos narrativos, sempre trouxeram consigo um peso dramático. Seja em boa parte da narrativa de “Chicago” (2002), seja no inesquecível “El Tango de Roxanne” em “Moulin Rouge – Amor em Vermelho” (2001).
Cenário único, palmas de uma plateia fictícia, romantização de personagens que construíram e fomentaram uma cultura de violência e prosperidade a troco de desumanizar as relações. Você pode achar que o filme é apenas um palco para o Tio Sam te seduzir, na melhor forma de “a história é contada pelos vencedores”. Usando um homem que viveu nos meandros do poder e cedeu para se manter nele, já que não acreditava tanto assim no liberalismo desenfreado que moldou a sua nação. Além disso, “Hamilton” faz crer que ainda podemos realizar grandes feitos a partir desses acordos de cavalheiros, que promoveram caos e mortes ao longo dos séculos. Mesmo assim, um inesquecível espetáculo audiovisual – mesmo sem utilizar toda a potencialidade de uma linguagem artística.
Veja o Trailer: