India Song

India Song Crítica Filme Marguerite Duras Pôster

Sinopse: Anne-Marie Stretter é casada com vice-cônsul francês e vive em Cálcuta, cansada da opressão do país estrangeiro, entra em colapso por angústia e aborrecimento. Isolada dentro da embaixada, ela acumula encontros sexuais e rejeita apenas o marido, que parece não se importar.
Direção: Marguerite Duras
Título Original: India Song (1975)
Gênero: Drama | Romance | Fantasia
Duração: 1h 58min
País: França

India Song Crítica Filme Marguerite Duras Imagem

Um Lote Imperialista e Patriarcal

Uma das obras audiovisuais mais populares da escritora Marguerite Duras, “India Song“, chegou hoje à plataforma de streaming Petra Belas Artes à La Carte. Com três indicações ao César de 1976 (melhor atriz para Delphine Seyrig, além de som e música), fez parte de um período de uma década em que ela produziu nove longas-metragens e três curtas. No ano anterior, ela já havia lançado “La femme du Gange“, que coloca outra protagonista no país que fez parte da Coroa Britânica até o final dos anos 1940. A história aqui se passa em 1937, período final da fase colonizada daquele território.

Lá se vão quase vinte anos desde que, adolescente, tive contato com a escrita de Duras. “O Amante“, romance autobiográfico que ampliou a dimensão de seus textos, foi uma das primeiras experiências em que restava clara a ideia de um olhar opositor feminino em relação à grande concentração de produções artísticas consumidas por mim (e feitas majoritariamente por homens). Ícone da literatura feminista, a francesa transportou essas representações ao cinema – e visitar esta linguagem após o crescimento de debates sobre o assunto também amplia certas leituras. Pensado originalmente como uma peça de teatro encomendada, ao ver que ela não seria produzida, quis a artista aplicá-la à Sétima Arte.

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Há um equilíbrio em “India Song” notável, que pode ter passado desapercebido tanto por quem procura a tal “visão feminina” (que Luísa Pécora em entrevista para a Apostila de Cinema registrou que, em tese, não existe como um bloco único), quanto por quem passa por cima dessa característica. O filme alcança tanto a alegoria política e de construção de uma sociedade – de forte apego ao passado, como trataremos a seguir – sem deixar de erguer na personagem Anne-Marie (Seyrig) um simbolismo sobre sua condição.

O longa-metragem conta a história da esposa de um vice-cônsul francês que passa seus dias em uma entediante mansão em Calcutá (que, na verdade, foi filmada na própria França, com Duras se negando a ver fotos que renovassem suas lembranças de uma distante viagem feita à Índia mais jovem). Há uma escolha de narrativa capaz de dificultar o acesso dos espectadores acostumados com o tradicional – e até mesmo a outros que se propõem a escolhas mais ousadas. Tal qual um de seus romances, Duras exige que formulemos certas imagens em nossas mentes. Os primeiros minutos mostram um pôr-do-sol e uma narradora que conta histórias de pessoas as quais não teremos acesso. Quando adentra a casa, o foco da diretora é a captação de objetos, com nossa acompanhante mencionando lugares os quais, também, não teremos acesso.

Até que se formule um fragmento de realidade na cabeça do público, um bom tempo se passou. Nessa imersão calculadamente lenta, tanto a mise-en-scène quanto as marcações e movimentos dos atores contribuem para uma sensação de decadência. Temos ali uma elite enfadonha, carregada de letargia, inamovível em seus privilégios. A cineasta, então, mais do que apresentá-los como pessoas que perderam a voz (em um país que, sem dúvida, era bem menos livre naquele tempo do que agora), ela retira essas vozes. Reutiliza, ignorando o conceito de fidelidade – posto que não são dignos desta preocupação.

Isso cria um duplo impacto no filme. O primeiro é criar unidade com todos os aspectos já mencionados. O outro é que nos leva a questionar ou a viajar sobre o que há de real no que sua protagonista nos mostra. Ela menciona por diversas vezes a lepra como um risco iminente – mas o tédio também era chamado por Jean-Paul Sartre de “lepra da alma“. E talvez isso soe como uma ironia à visão do próprio autor, pelo qual publicamente Duras não gostava.

Talvez por isso, em certo momento, ela utiliza novamente a doença como desculpa para revelar uma das poucas chances que tem de sair daquele confinamento imposto. Naquela casa, Anne-Marie permanece como um troféu ou parte da mobília de uma propriedade que o homem tomou para si enquanto “conquista o mundo” – e a deixa na “segurança do lar”. A protagonista, então, diz que irá “aos Jardins de Shalimar contra a lepra“, o que se refletirá na fuga do território o qual o espectador passa quase todo o filme. É quando ela surgirá acompanhada por todos aqueles homens. O tédio de Anne-Marie pode ser superado com a subversão da ideia dela ser um troféu e ficar livre para dispor do próprio corpo. Visão a qual a genialidade de Sartre nunca terá acesso.

O trabalho de construção de imagens é lindo (e lento). Por trás de toda a liturgia, há o uso de espelhos que replica aqueles homens que circundam Anne-Marie. Aos poucos eles vão se dobrando no plano existencial e grande parte do que se vê só ganha carga interpretativa a partir do que se ouve. Apenas um indiano aparece em cena, servindo champanhe para aqueles representantes do imperialismo ocidental (o qual, a narradora, ensaia abrir questão sobre sua culpabilidade e como o povo daquele país é a grande vítima).

Porém, no meio das próprias aventuras e de seu drama pessoal, a personagem se permite ser autoindulgente a tentar reverter apenas os seus problemas. Ao promover no andamento da narrativa essa carga política e depois se recolher, Duras é bem mais crítica do que muitas produções que usam esse mote. Deixa aquela elite branca fazendo o que melhor sabe: viver das aparências. Ao contrário de “Malmkrog” (2020) que expõe essa decadência em diálogos, “India Song” consegue nos provocar com uma junção incomum de vias paralelas entre imagens e sons (não apenas palavras, há uma adição de outras vozes e barulhos que ampliam a ideia de derrocada daquele espaço). Quase na metade, a música-tema começa a se tornar mais presente e aquele homem que chora ganha outro peso.

Por fim, a curiosa cena final nos leva a um mapa. É a escolha de plano final de Marguerite Duras. Uma mulher que soube, de todas as formas que a arte se manifesta, nos levar para lugares que jamais conseguiremos ir – e estados que nunca chegaremos a atingir.

Ouça “India Song”, na voz de Jeanne Moreau:

 

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