Indianara

Indianara

Sinopse: O documentário mostra a vida e a rotina de Indianara Siqueira, ativista transexual e idealizadora de uma casa de acolhimento para pessoas LGBTI+ em situações de vulnerabilidade, a Casa Nem.
Direção: Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel
Título Original: Indianara (2019)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 24min
País de Origem: Brasil

Vai passar: Possibilidades de resistência em um Rio de Janeiro em caos

Um dos meus mantras desde 2018 tem sido “Vai passar”. Assistindo ao desmonte da cidade e de seu equipamento artístico e cultural, uma imensa sensação de imobilidade, incapacidade e frustração tomou conta de meu corpo nos últimos anos. O questionamento sobre a eficácia de minha profissão (as Ciências Sociais) e a morte de minha colega de classe e uma figura de referência no Rio de Janeiro – a saber, a Vereadora Marielle Franco – também me colocaram diante de uma pergunta central: o que é possível fazer diante ao esfacelamento sistêmico da cidade que um dia foi referência para o Brasil e a América Latina?

Entender que o filme “Indianara” ultrapassa a figura da militante e nos coloca face a esses desmantelamento urbano é essencial para fruição do filme.

Indianara Siqueira é uma figura polêmica e suas táticas de resistências frente à Casa Nem podem ser entendidas como um afastamento de possíveis indivíduos que comungam da mesma vontade de modificar a aculturação à qual foi acometida a cidade.

Para além das telas de cinema, “Indianara” fala sobre um contexto complexo de redes de cooperação (ou que deveriam ser de cooperação) que explicam a pergunta que vem sendo lançada pelos mais diversos veículos mundiais desde as últimas eleições: como chegamos até aqui?

É ainda mais complexa a relação entre pares e apoiadores do movimente LGBTQI+. Eu, mulher negra, bissexual em um relacionamento afetivo com outra mulher negra, não me atrevo a destrinchar esses nós sozinha, mas convido aos leitores que tentem pensar e reformular algumas questões comigo a partir de provocações feitas pela própria Indianara durante o documentário e durante o debate que se seguiu com participação dos diretores tal e tal e da comunicóloga Ivana Bentes.

Vamos pensar na formação do movimento LGBTQI+ no Brasil. Embora muitas figuras venham lutando pela visibilidade há décadas somente em meados da década de 90, alguns movimentos conseguiram se consolidar e ganhar mais espaços em veículos formais e informais e comunicação. Chegando posteriormente à política nas figuras de Jean Wylis, Marielle Franco e da própria Indianara.

Portanto, o filme “Indianara” e a personagem Indianara são indissociáveis. Não por acaso, os diretores Marcelo Barbosa e Aude Chevalier-Beaumel optam por uma câmera que acompanha os corpos tento em sua intimidade ,quanto nos momentos públicos.

Uma câmera que aproxima o espectador das figuras fortes que transitam pela Casa Nem, mas que também se coloca presente em momentos de conflito, como nas manifestações. Essa sequência em particular, apresentando um corpo trans com uma máscara de gás, remete a uma distopia próxima.

Trazer o espectador para perto do cotidiano da ativista, mostrando momentos íntimos com seu marido – outro personagem rico por si só, tanto que ganha destaque de co-protagonista – faz com que queiramos saber mais. Faz com que queiramos entender como Indianara Siqueira suportou por tanto tempo a missão que tomou para si, a de proteger corpos vulneráveis de trans, travestis e putas – como a própria gosta de falar.

O filme opta por não cortar da narrativa a morte de Marielle, o que nos coloca ainda mais no cerne do furacão que passou e continua a passar pela cidade.

Ainda que mescle momentos leves e quase cômicos, mostrando que aqueles corpos vivem como nós, tem relacionamentos como nós e se emocionam como nós; a direção é certeira ao fazer a transição entre esses momentos e os dramáticos vividos pela Casa Nem como um conjunto possível de resistência.

A sessão do dia 10 de março, no cinema lotado do Maison de France no Rio de Janeiro contou com a performance de uma das filhas da Casa Nem, nos lembrando que, ainda que tenhamos lugares periféricos diferentes dentro do tecido social, precisamos permanecer unidos. Algo que também influenciou a minha experiência cinematográfica. E acho que Indianara deve ser entendido como tal: uma experiência cinematográfica compartilhada pelos que desejam um Rio menos cruel.

Ainda que eu, em minhas particularidades, não concorde com alguns aspectos do discurso da ativista, o recado de que precisamos arrumar uma maneira de nos encontrar nos nossos desencontros, me mobilizou, mobiliza e sempre mobilizará.

No contexto atual, qualquer movimento em direção à diversidade nós levará a um entendimento melhor sobre e com a alteridade.

Espero que, em breve, possamos estar todos comemorando a reconstrução política e cultural da cidade em uma piscina de plástico (como a de Indianara Siqueira) ou em um inferninho.

Sejamos aqueles que dizem “Vai passar”, enquanto procuramos elaborar nossas próprias estratégias e discursos de resistência.

Afinal, vai passar e precisamos estar unidos para refletir sobre qual território e qual cidade queremos construir para o futuro.

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Em constante construção e desconstrução Antropóloga, Fotógrafa e Mestre em Filosofia - Estética/Cinema. Doutoranda no Departamento de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com coorientação pela Universidad Nacional de San Martin(Buenos Aires). Doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Além disso, é Pesquisadora de Cinema e Artes latino-americanas.

2 Comments

  1. Oi, Roberta, muito acurado o texto sobre os apontamentos do filme e de sua simbiose com a personagem, deu vontade de puxar mais ainda os novelos que você vai desenrolando. Muito legal. Não tinha ainda lido o texto, que imagino, deve ter sido publicado já há um tempo. De fato, a situação do Rio e do Brasil nesse momento é tão complexa que o filme quando deixa uma vontade de saber mais, talvez alcance seu maior trunfo, o que é possível agora. Com certeza o filme é também uma provocação e não concordo também com tudo o que a personagem coloca. Mas também espero estar comemorando a reconstrução da cidade com você e muitos mais. Valeu !

    1. Fico feliz que tenha gostado. Filmes como esse são cada vez mais importantes e diretores como você que tenham vontade de se aproximar dessas personagens tão ricas são essenciais.

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