Irmã

Irmã Filme Crítica Luciana Mazeto Vinícius Lopes Pôster

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Sinopse: Quando a doença de sua mãe se agrava, Ana e Julia viajam ao interior do Rio Grande do Sul em busca de seu pai. No caminho: fantasmas, superpoderes e dinossauros.
Direção: Luciana Mazeto e Vinícius Lopes
Título Original: Irmã (2020)
Gênero: Drama | Fantasia | Suspense | Musical
Duração: 1h 28min
País: Brasil

Irmã Filme Crítica Luciana Mazeto Vinícius Lopes Pôster

Serem Telúricas

Para definir sua relação com “Irmã“, há que se refletir sobre algumas formas de exploração audiovisual, inclusive de gênero. Exibido na Mostra Olhos Livres da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme chega com uma importante empresa por trás de seu lançamento, a Elo Company – e após exibição na última Mostra SP. Isso já garante uma perspectiva de vida no circuito maior do que boa parte de produções exibidas no festival. Em uma obra em que os diretores Luciana Mazeto e Vinícius Lopes se pautam na liberdade, temos aqui um longa-metragem que encontra um dinamismo a partir da ausência de unidade de representação. É, sim, uma narrativa tradicional, mas dentro dela há quebras de linguagem que o tornam quase indefinível (tal como a salada de gêneros em nosso parágrafo de classificação do filme).

Entender isso como problemas de identidade narrativa pode ser o caminho de parte da crítica, que se dividirá em percepções sobre qual leitura valorativa dar. Vivem uma ditadura do julgamento, sentenciando arte como se fosse gastronomia, em que um bolo não pode abrir mão do açúcar sem encontrar um substituto. Se não, não é bolo. É outra coisa. Fato é que o filme de Luciana e Vinícius é, portanto, outra coisa, se isso satisfaz um nobre senso de justiça. Não pedimos para abdicar de leituras lógicas, mas – assim como no filme – a destruição da Humanidade parece tornar cada passo que damos adiante um inútil sentimento de evolução. Por isso, escapismo se tornou um conceito quase tão irreal quanto a própria tentativa de extrair realidade dessa ciranda confusa de manifestações que chamamos de dia.

Usando canções de Karina Buhr como guia narrativo (trilhas pré-existentes e originais, todas incríveis), “Irmã” conta a história de Ana (Maria Galant) e Julia (Anaís Grala Wegner), que viajam de Porto Alegre para o interior do Rio Grande do Sul. Com a mãe doente, elas pretendem reencontrar o pai – mesmo que o objetivo seja apenas a referência familiar. Todavia, a sequência inicial deixa clara que as protagonistas já formam um núcleo afetivo muito sedimentado. As imagens na janela nos revelam a chegada a um território muito diferente de um centro urbano, enquanto elas cantam parecendo se energizarem. Isso rompe com a própria trilha de sintetizadores que nos colocavam em um suspense dos anos 1980 no prólogo.

Nessa longa viagem, a menina se entretém com dinossauros, conhece uma cachoeira, antes de chegar na toca da bruxa. Talvez nós, enquanto adultos, devêssemos começar a ludificar nossas vivências também. Aquelas irmãs curtem os derradeiros momentos de fuga da realidade, como se “realidade” fosse a linha de chegada de uma corrida que elas querem perder. O filme aos poucos insere pensamentos, tal como um livro, de forma escrita. Não é um mergulho experimental, mas é – de certa maneira – uma provocação ao espectador desatento. Aquele que acha que dividir atenções nos olhares de uma obra audiovisual é possível. Os diretores exploram a permanência da imagem quando lhes convém, saindo de determinados espaços um pouco depois de Ana e Julia.

É divertido viajar nessa imprevisibilidade da sequência seguinte, mesmo que “Irmã” não seja uma viagem surrealista ou anárquica. O longa-metragem quebra de vez sua convenção inicial ao fim do primeiro terço, quando “The War’s Dancing Floor” transforma determinada cena em um musical. Os sintetizadores voltam, mas com uma roupagem moderna e sem o saudosismo a ele adstrito quando se ergue como ponto de partida de representações. “Ser a raiva e a vacina“, um recado que ganhou novos sentidos nos últimos meses.

As composições visuais do filme não remexem apenas na linguagem do cinema, há um abraço à literatura fantástica. É o vento que leva um emaranhado de folhas que apenas a nossa imaginação consegue entender. Respeitar quem defenda a irregularidade do percurso é exercício resiliente, ainda mais com o forte ato final, que flerta ainda mais com o onírico. Quando Carlos (Felipe Kannenberg) confirma o pai enquanto figura antagônica, o que nós queremos apenas é que a pequena Julia volte ao seu mundo de dinossauros. “Veio para dizer que não precisa de mim” – e, assim como mãe e filha de “A Mesma Parte de um Homem“, não precisam mesmo.

Viajar pelos caminhos de “Irmã” é absorver um pouco o magma de si mesmo, é entender as representações como uma corrente telúrica que transforma a realidade das protagonistas em larva quente. Talvez a sua também seja um emaranhado de fricções de um solo que você falsamente acredita que está pisando. E aí, qual gênero você escolheria para sua própria narrativa?

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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