Jane por Charlotte

Jane por Charlotte Documentário Crítica Filme Poster

45ª Mostra SP LogoSinopse: Com o passar do tempo, Charlotte Gainsbourg começou a olhar para sua mãe, Jane Birkin, de uma forma que nunca havia feito e, assim, mãe e filha começam a ultrapassar uma ideia comum de reserva e discrição. Em “Jane por Charlotte”, por meio das lentes da câmera, as duas se expõem, dão um passo para trás e abrem espaço para que a relação se desenvolva.
Direção: Charlotte Gainsbourg
Título Original: Jane par Charlotte (2021)
Gênero: Documentário
Direção: 1h 30min
País: França

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Prender em Nossos Dedos

De carreira consolidada na atuação, Charlotte Gainsbourg apresenta seu primeiro longa-metragem como cineasta na Competição Novos Diretores da 45ª Mostra SP com “Jane por Charlotte“, um registro direto de encontros com sua mãe, a cantora Jane Birkin. Um documentário no qual a realizadora não se esquiva de ser co-protagonista, ao mesmo tempo que deixa em aberto parte de seus objetivos com a obra. Equilibra as representações indo do questionamento ao enfrentamento, passando por sentimentais registros de um ente querido – e o medo de um dia não contar com ele fisicamente ao seu lado.

Birkin comanda as ações com sua espirituosidade. Parece querer adequar ou transformar as propostas da filha, também responsável pelo roteiro. Norteia as conversas de maneira que torna indutivo o processo de montagem de Tianès Montasser. Veremos mais adiante que a pandemia de covid-19 também será uma personagem do filme, mas a preocupação inicial de Jane, nos primeiros minutos, é qualificar sua relação com Charlotte.

Sendo assim, em “Jane por Charlotte” somos apresentados a uma mãe que achava as atitudes da filha – ainda criança – muito intimidadoras. Talvez herdando na genética a espirituosidade dela mesma, fato é que essa autonomia precoce fez com que a cantora evitasse a intimidade junto à futura atriz. Carregando traumas anteriores, pelo relacionamento fracassado por conta das traições do músico John Barry, parte do discurso dela parece carregar consigo explicações sobre sua atitude enquanto mãe. Não como um pedido de desculpas, mas de apelo pela cumplicidade e entendimento sobre suas intenções.

Gainsbourg, entretanto, deseja pluralizar a abordagem e, nos melhores momentos do filme, são as conversas sobre a estética do envelhecimento que chamam a atenção. Jane parece resignada com os caminhos de sua existência, mas não podemos ignorar que alguns de seus comportamentos indicam tristeza e até alguns indícios de depressão. É nesse ponto que o isolamento social se torna elemento da obra, já que não conseguimos mais atestar os fatos geradores de nossas dores mais recentes – e até que ponto a própria produção do longa-metragem não parece parte de um processo de ajuda mútua entre mãe e filha.

Não é apenas na traição de John Barry (e ela chama sempre com nome e sobrenome quando o menciona) que reside o passado que retorna à mente de Birkin. A morte precoce da filha Kate Barry em 2013, aos 46 anos, após um acidente doméstico, também aparece como tema. Quase como se fossem exorcizar parte desse passado, elas vão à residência que era de Serge Gainsbourg (e ela chama sempre apenas pelo primeiro nome quando o menciona), que segue assustadoramente intacta desde seu falecimento, há exatos trinta anos.

Ali elas não concluem muita coisa. Afinal, Charlotte não parece decidida sobre qual busca ela faz com seu filme; enquanto Jane tem a acumulação como característica em sua própria casa. Enquanto esta vive a dificuldade natural de se desfazer de objetos que despertam sua memória, aquela cria novas lembranças audiovisuais, como se pudesse materializar a existência da mãe da mesma forma que a enorme quantidade de bens que entulham a linda casa no interior da França.

O documentário de 1988 de Agnès Varda, “Jane B. por Agnès V.” aparece de forma residual, mas é a grande inspiração para que “Jane por Charlotte” ganhasse vida. Gainsbourg já admitiu em entrevistas que não gostou da experiência de ver sua residência se transformar em um set de filmagens, como aconteceu com a equipe da célebre cineasta francesa. Naquele momento, o envelhecimento também era o mote da obra, com Birkin prestes a completar 40 anos. Agora, com mais de 70, ela protagoniza um outro tipo de produção. Minimalista e intimista, usando as propostas do cinema de dispositivo como parte do jogo.

Jane também faz um pouco as vezes de realizadora, falando sobre a trilha sonora a ser usada (na época de Varda foi uma composição de Serge). Charlotte fala que será uma dela ou alguma em domínio público, evitando o aumento dos custos. Elas ficam com Bach por alguns instantes. Durante a jornada pandêmica, a mãe segue um caminho que boa parte de nós também fez: leva para casa um cachorro, na vã tentativa de romper com a solidão. Vã porque, ao final do filme, a carta lida é sobre medo.

Se pensarmos em Serge, Kate e Agnès não deveríamos ter medo da morte. Os que ficam propagam nossas memórias. Porém, em algum momento seremos esquecidos – e talvez não adiante muito a ideia de imortalizar através das imagens. Projetar um futuro sem uma mãe ou uma filha, sem ter esse afeto neste plano de existência, é pesado até para quem viveu como as duas talentosas e reconhecidas personagens. Melhor ficar com o sentimento provocado no presente e levar “Jane por Charlotte” como um comovente registro de uma jovem diretora querendo se entender antes de apresentar qualquer cartão de visita.

Veja o Trailer:

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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