Sinopse: “Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester” segue a ascensão de Austyn Tester, um adolescente de 16 anos de uma pequena cidade rural de Tennessee, EUA, nas redes sociais. Suas lives cheias de um otimismo ingênuo são seguidas por mais de 20 mil garotas ensandecidas. A diretora premiada Liza Mandelup, que começou a carreira na fotografia e como caçadora de talentos, faz um retrato complexo do universo impiedoso e explorador das mídias sociais, expondo os bastidores dessa tecnologia ainda relativamente nova.
Direção: Liza Mandelup
Título Original: Jawline (2019)
Duração: 1h 33min
Gênero: Documentário
País: Estados Unidos
O Influencer das Moscas
Ao assistirmos “Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester” na Mostra Ecofalante, por vezes parece que estamos diante de um atualização do romance de William Golding, “O Senhor das Moscas“, lançado em 1954. Trazendo a história de um adolescente que se destaca como influenciador digital, são raros os momentos em que algum adulto aparece em cena. Suas funções são meramente protocolares ou, até mesmo, se comportam como se jovens ainda fossem. Resultado do poder que esses meninos com seus milhares de seguidores nas redes sociais têm de controlar a própria vida. Fazendo lives em que a plateia oferece dinheiro em troca de pequenas recompensas (conversar por alguns minutos e coisas assim) e desafios de likes dos mais banais, como prometer cortar o cabelo, inexplicavelmente esse mercado segue em crescimento.
Produzido para a plataforma de streaming Hulu, a diretora norte-americana Liza Mandelup usa representações a partir da câmera que faz lembrar “Ed TV“, filme que Ron Howard lançou em 1999. Se em nossa crítica de “O Dilema das Redes” mencionamos “O Show de Truman” (hoje bem mais conhecido do que a outra produção), o longa-metragem estrelado por Matthew McConaughey também foi premonitório nessa ideia de que o conceito de entretenimento estaria cada vez mais atrelado à vida real. O que há vinte anos se tornou o fenômeno dos reality-shows, com o passar do tempo foi migrando para vlogs de sucesso e hoje são constantes atualizações no Instagram, boa parte via stories com apenas 24 horas de duração.
Até chegarmos nos desdobramentos de “Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester” presenciamos uma transformação da produção de conteúdo provocada pelo Snapchat – um programa que se desenvolveu pela necessidade dos adolescentes terem uma rede sem a presença dos mais velhos – totalmente inseridos no Facebook. Com a premissa da descartabilidade, a cada nova atualização geracional, a fugacidade das mensagens é ampliada. Essa maneira pulverizante de falar com o público cria uma dupla ansiedade: do emissor e do receptor. O primeiro precisa se deparar com grandes acontecimentos no seu cotidiano, porque o gráfico de interações e likes não admite quedas. O segundo se vê obrigado a consumir, transformando as vidas de quem ele admira em pequenas micro novelas que não admitem que percamos nenhum capítulo.
Depois que “Jawline” nos apresenta Austyn Tester, o adolescente que começa a fazer sucesso em sua pequena cidade, Mandelup nos mostra que por trás dos grandes influenciadores, que envernizam seu trabalho como se estivessem apenas vivendo, há uma equipe. Horários rígidos e cobranças fortes. Empresas e agentes capazes de catapultar seu êxito a troco de uma boa porcentagem em seus ganhos. O que o filme faz é atualizar a ideia da cultura do fã e tentar mostrar os motivos pelos quais os jovens elevam pessoas iguais a elas, aparentemente comuns, ao estrelato. Adultos nunca compreenderam as escolhas adolescentes, mas o filme nos convoca a trazer para as nossas bolhas o que é ali mostrado. É cada vez mais difícil diferenciar conteúdos, visto que há uma padronização de condutas bem aceita nas redes. Por outro lado, as grandes marcas viram uma oportunidade de tirar suas propagandas que pesam ouro em corporações midiáticas e agir como pequenos mecenas de influenciadores.
Não há esse debate no documentário, mas algo que tenho dificuldade em compreender é essa predileção por anúncios a partir desses profissionais. Uma opção de alto risco, em uma realidade – essa sim mostrada e verbalizada na obra – de que é um ofício com prazo de validade e a regra é se explorar ao máximo e fazer todo o dinheiro possível antes que você deixe de ser novidade (ou seja cancelado). Mesmo assim, é um ciclo o qual não conseguimos sair. Eles e nós. Eles gastando algumas horas para criar um vídeo de poucos segundos no Tik Tok. Nós gastando algumas horas assistindo a centenas desses vídeos.
Vivendo nesse limiar, Austyn Tester é um exemplo de um dos laboratórios com mais cobaias que a Humanidade conseguiu produzir em sua existência. A cineasta faz um montagem em seu filme em que, supostamente, esgota o tema nos primeiros dois terços. Deixa registrada a opinião de todas as peças desse tabuleiro. Chama a atenção, inclusive, como os adolescentes projetam nos influenciadores (que entendem ser “amigos virtuais”) uma relação perfeita. Só que gestada a partir do contrapondo com as “amizades reais”, carregadas de julgamentos e bullyings e dependentes das alterações de humor. Relações, essas, sem filtro.
Se destaca também como esses jovens influenciadores, em certo estágio do sucesso, tendem a levar consigo o personagem – com sua capacidade de dar conselhos e explicar quase tudo o que acontece no mundo e nas relações humanas. Boa parte deles chegam a abandonar os estudos formais porque já conseguem ganhos superiores a mil dólares por dia. O conhecimento de vida que eles têm e baseado no conteúdo produzidos por eles mesmo, todavia tendem a criar falsas simetrias entre as demandas que seus seguidores lhe apresentam e seus mundos de faz-de-conta. Isso faz com que a projeção de amizade real e sincera aqui mencionada se transforme, fatalmente, em uma enorme frustração.
Até que o terço final de “Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester” chega e com ele um grande desmoronamento do castelo de cartas que parecia blindado. Aquele sonho americano de ser estrela em Los Angeles se transforma em mais pressão, brigas e crises que – como quase sempre acontece – leva a uma crise. A questão é que esse processo é renovado sem que a gente perceba. Quando abrimos os olhos, aquela influenciador que deixou de apresentar bons números sumiu do nosso feed e já estamos gastando nossas energias consumindo novos conteúdos. Na ditadura dos stories ninguém mais tem o poder de atribuir qualquer valor de mercado porque estamos perdidos em meio a tantas recompensas que ganhamos sem nem saber que precisávamos dela.
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