King Kong en Asunción

King Kong en Asunción Filme Critica Poster

Confira a estreia de “King Kong en Asunción” com crítica e entrevistas exclusivas!

Assista às entrevistas com o diretor Camilo Cavalcante e os atores Fernando Teixeira e Ana Ivanova:


Sinopse: Um velho matador de aluguel está escondido no interior da Bolívia, na região desértica do Salar de Uyuni. Acabou de cometer o seu último assassinato. Após meses isolado, ele viaja para o interior do Paraguay onde recebe uma boa recompensa e segue para Asunción com o objetivo de conhecer sua filha.
Direção: Camilo Cavalcante
Título Original: King Kong en Asunción (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 30min
País: Brasil | Bolívia | Paraguai

King Kong em Assunción

O Carrasco de Si Mesmo

A memória é um percurso instável“. O filme que encerra a mostra competitiva do Festival de Gramado 2020, “King Kong en Asunción“, começa com um punhado de frases narradas por uma voz (Ana Ivanova) que, se tínhamos dúvida de quem era, os créditos finais imediatamente suplantam o questionamento. É apenas uma das contribuições verbalizadas da construção visualmente impressionante do cineasta, que precisou de mais de uma década para mostrar ao mundo o seu filho. Uma ideia nascida após conhecer Andrade Júnior (que interpreta o protagonista) em outro festival, no ano de 2007, na cidade Nova Iguaçu. Dá para imaginar como as ideias foram surgindo e o realizador foi ampliando seu leque de referências, de assuntos possíveis a se abordar, de concepções imagéticas postas em prática – tudo com uma pequena equipe, filmando na Bolívia e no Paraguai em 2017.

O velho matador é um homem que inventou para si o amor. Após cumprir mais um de seus serviços no Salar de Uyuni, ele conclui que deve deixar seu ofício à deriva. Afinal, em outra grande frase do filme, “a velhice é um naufrágio“. Andando por desertos e pradarias, ele encontrará aquele que lhe entregrará seu último trabalho. Depois disso, a aposentadoria – com direito a comemoração. Só que o homem não esperava que todas aquelas pessoas que ele matou voltassem a sua mente. E questionando: por que você fez isso? Decidir tirar a vida de alguém deveria ser a decisão mais excepcional. Mas há quem faça por dinheiro. Há quem faça por esporte. À primeira vista, a tirania daquele velho parecia injustificável, uma mistura de desapego e ganância. Mas, no sul do Equador, as coisas não são tão simples como parecem.

Desta forma, “King Kong en Asunción” vai metaforizando e abrindo caminhos para enxergamos nele toda a complexidade de uma América do Sul carregada de melancolia, sofrimento e desejo de ser feliz um dia. Aquele homem é só mais um genocida que pisou por aqui. Intenções mais ou menos nobres, motivações pessoais ou coletivas, para deleite de uma classe ou em nome de um projeto. A morte sempre nos acompanha, como uma voz que não sai da nossa mente. Talvez por isso nosso processo de naturalização de um vírus relativamente letal não tenha sido difícil. Ser latino-americano é saber qual o calibre da arma pelo som do tiro, é chorar mais por amor do que pela partida. É ver naquele velho uma horda de canalhas que derramaram nosso sangue nessa terra.

Mapuches, guaranis, bororos, icamiabas, aruaques. Negros, roceiros, mineiros, extrativistas. Mulheres, gays e trans. Quantos nesses cinco séculos de genocídios e mortes injustificadas não poderiam se reunir e questionar tantos outros velhos como aquele: por que a minha vida? Para retratar toda a hipocrisia reinante, Cavalcante separa um momento em que coloca seu protagonista em uma pequena igreja. “Seu coração é um vácuo ingente“, sentencia a voz. Depois de exterminar a pluralidade daquele território, o carrasco sul-americano transita como um sombra no meio daquele povo, que resiste em ser múltiplo e ignora sua existência.

O ideal de sucesso, contrapartida ou recompensa a si é realizado na área turística de Assunção. Largas avenidas e um rock balada setentista. A felicidade para nosssa elite é ter um pedaço de Miami em cada grande idade. Olhando retratos de homens brancos, somente canalhas ou até mesmo genocidas tal qual ele, o arrependimento parece – finalmente – bater. Destituídos, falsos, traidores. Collor, Sarney, Temer. Hoje velhos circulando pelos seus desertos, em seus cassinos particulares, com o melhor do que a vida pode lhes proporcionar. Deixam um rastro de morte e desesperança ao seus. Carcaça de verme que o protagonista de “King Kong en Asunción” não quer mais para si.

Dentre todos os seus crimes, o mais grave ele comete contra a filha não reconhecida. Não bastasse tanto apagamento, ele renega à sua prole o direito à ancestralidade. Só percebe o quanto isso é danoso, quando se vê se despedindo da sua. Sua vida está pronta para naufragar, mas sua dignidade e sua honra pularam do barco há muito tempo. Camilo Cavalcante propõe um exercício de regressão para que seu espectador possa ter a certeza do momento exato em que aquele pedaço de América do Sul violenta e melancólica se criou. Se havia dúvidas de que no interior daquela carcaça de verme havia poesia capaz de motivar um realizador tão talentoso e criativo a atravessar mais de uma década por seu projeto, ele entrega também esta resposta.

King Kong en Asunción” nos faz parar e lembrar, no meio de tantos culpados que podemos apontar como responsáveis por nossa desgraça, que a todo instante – em algum ponto desta terra úmida de sangue – nasce um novo desejo de vingança. Por vezes, realizado de forma desproporcional.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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