Sinopse: Deixe a água, o petróleo e os metais raros de lado por um momento. Há um novo recurso cobiçado por todos: o (nosso) tempo. De nos deixar imprimir o próprio cartão de embarque e despachar a bagagem até lucrar com nossas visualizações de páginas e cliques, “Ladrões do Tempo” revela como companhias e redes sociais monetizam o nosso tempo sem o nosso conhecimento, fazendo dele o seu modelo de negócio, destruindo milhões de empregos e controlando nosso comportamento.
Direção: Cosima Dannoritzer
Título Original: Le Temps c’est de l’Argent: Le Braquage du Siecle (2018)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 2min
País: França | Espanha
Cronos Metrado
“Ladrões do Tempo” é uma das obras mais interessantes apresentadas até agora na 9ª Mostra Ecofalante de Cinema. O documentário dirigido pela alemã Cosima Dannoritzer consegue, ao mesmo tempo, trazer uma questão que é causa e consequência da letargia da Humanidade sobre todos os outros temas sócio-ambientais que perpassam os outros documentários dos recortes do festival: nossa relação cada vez mais tóxica com o tempo.
O arco que se fecha totalmente no média-metragem parte da infância, fase conhecida pela despreocupação com o amanhã. Naturalmente por ser um momento onde ainda estamos tendo os primeiros contatos com um mundo que ainda não dimensionamos a complexidade. Só que a conclusão do filme, carregada de pessimismo, deixa implícita sua posição de que as gerações em curso não terão a capacidade de solucionar este dilema de preocupação desenfreada com produtividade. A desconstrução e a reeducação talvez sejam impossíveis porque estamos dentro de um sistema que não parece permitir concessões – e, ironicamente, não temos tempo para buscar uma solução antes que a Síndrome de Burnout nos atinja.
O documentário nos traz alguns pontos para reflexões e sua duração permite que a abarcamento dos subtemas ocorra de forma a não cansar o espectador com desdobramentos dos assuntos. Um deles é a confirmação de uma sensação que boa parte de nós temos: a de que estamos sempre trabalhando. Parte de dois momentos que, fatalmente, qualquer um já passou. O primeiro é a ocupação imediata de qualquer vácuo temporal com novas formas de produzir. Quem nunca aproveitou que estava no banheiro para ler notícias ou organizar seus e-mails? Uma empresa chegou a fazer uma tiragem de jornal para os funcionários lerem nos poucos minutos em que não estão em suas mesas trabalhando, o auge da humilhação em uma relação laboral.
Essa formatação de tempo que não aceita espaços vazios é um processo cada vez mais difícil de ser interrompido. Já desenvolvi trabalhos que me demandaram 14 ou 16 horas seguidas em uma mesa de computador – com poucos e curtos intervalos, milimetricamente calculados, para necessidades básicas como ir ao banheiro e comer – o segundo por vezes feito na mesma mesa, durante uma revisão. É até curioso que “Ladrões do Tempo” não cite o professor e crítico de arte Jonathan Crary e sua obra fundamental “24/7 – Capitalismo Tardio e os Fins do Sono“. Escrito em 2013, o que o norte-americano diz é que a Humanidade chegará em breve ao seu último desafio sobre a produtividade: a necessidade de dormir. Aliás, a qual preciso satisfazer depois de terminar esse texto.
Por sinal, a multiplicidade de tarefas segue sendo romantizada na sociedade. Este próprio ofício aqui praticado, de crítica de cinema, dificilmente é exercido por pessoas que atuam única e exclusivamente na área. Um ciclo de inviabilidade econômica que ninguém sabe dizer se ocorreu porque se desvalorizou ou se houve desvalorização a partir dos primeiros desbravadores multitasks, que precarizaram a carreira e forçaram uma adaptação aos novos tempos.
A outra forma de se pensar nossa derrota sobre o tempo é a imposta pela atividade econômica e praticamos sem entender isso como um atraso e sim um avanço: o famoso DIY (do it yourself, ou faça você mesmo). Expressão aqui colocada e que não foi assim verbalizada no filme, por sinal. O exemplo trazido é o das organizações de viagens turísticas sem a necessidade de intermediários. Nós pesquisamos nossas passagens, hospedagens, destinos e formas de nos transportarmos e extrairmos o melhor do passeio – no nosso entender. Isso parece ser um grito de liberdade sobre as amarras da Economia e um suposto condicionamento de condutas. Mas, na verdade, é um tempero picante nessa receita de angústia produtiva que consumimos diariamente.
Pessoalmente, essa angústia vem forte em dias que chamo de “amarrados”. Se nas primeiras duas, três horas do dia nada de relevante é realizado (no trabalho, na vida pessoal, no lazer, o que seja) bate a neurose de entrar em um espiral que tornará aquele dia inútil. Isso criou uma ideia de que quanto mais cedo começarmos, melhor. Já fui adepto da doutrina de sentar na mesa do escritório às 6:30 da manhã e isso só me levou a uma ampliação das horas de trabalho.
Por sinal, o exercício de nossas atividades remuneradas, principalmente àquelas que mergulharam no home office durante o período de isolamento social, precisa ser reciclado assim que a “normalidade” retorne. Na prática, estamos vendo uma confusão ainda maior de trabalho e lazer, tempo livre e tempo produtivo, o que mudará nossa relação com o tempo para sempre. Não acredite quando seu patrão alegremente te dizer que não precisa mais encarar horas de transporte público para estar presente fisicamente na empresa. Esse cálculo já está sendo feito e não há como defender que o melhor seria bater cabeça por horas incontáveis de trânsito – onde você tentaria ser produtivo lendo, ouvindo música ou tricotando.
Muitas divagações são provocadas por “Ladrões do Tempo”, uma obra que peca por essa falta de enquadramentos e teorias já existentes, posto que preocupado em suscitar e não ir a fundo. Por coincidência, ao longo da cobertura do Festival Ecrã, quando falamos do filme “Estratos Fantasmas” (2019), de Ben Rivers, fizemos uma brincadeira sobre a subjetividade do tempo. O documentário franco-espanhol critica ao final essa forma de objetivarmos um conceito tão aberto e livre em prol da materialização econômica. Traz um pouco da origem, com imagens que demonstram como a criação de um cronograma ferroviário aumentou a demanda por relógios portáteis e com ele a possibilidade de levarmos a medição do tempo constantemente conosco.
“Ladrões do Tempo” se encerra com a velha máxima de que “não existe almoço grátis” e tenta nos convencer de que a alegação de que aplicativos e redes sociais ditas gratuitas está equivocada, visto que Facebook e derivados são muito bem pagos com o nosso tempo. Algo que nunca recuperaremos. Talvez quando a prisão de uma vida cronometrada não seja o suficiente, o Capital finalmente construa uma máquina do tempo, com o objetivo único de dobrar nossa produtividade.
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