Sinopse: “Lidando com a Morte” de passa em Bijlmer, bairro multiétnico de Amsterdã, onde cada cultura tem seus próprios rituais relacionados à morte. Anita gerencia uma agência funerária e precisa garantir que essas práticas e cerimônias sejam respeitadas. No entanto, quanto mais se aprofunda nesse universo, mais ela percebe o quão pouco sabe sobre as diferentes culturas locais. Anita, então, passa a se questionar se a casa funerária, que reúne essa diversidade cultural sob o mesmo teto, atende às necessidades do bairro ou é apenas um empreendimento que espera conquistar espaço nesse mercado.
Direção: Paul Sin Nam Rigter
Título Original: Dealing with Dead (2021)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 14min
País: Holanda
O Capital da Morte
Quando “Lidando com a Morte“, parte da Competição Novos Diretores da 45ª Mostra SP, tem início, sua proposta nos leva a uma reflexão sobre convivência cultural e inclusão de novos agentes em uma sociedade cada vez mais globalizada. Uma consequência dos tempos sombrios de um espectador que vive o Brasil de 2021. Porém, com o passar de pouco mais de uma hora do documentário dirigido pelo coreano-holandês Paul Sin Nam Rigter, os objetivos do capital e a ideia de cooptação de aspectos formadores de uma comunidade passam a gritar mais alto.
Essa dicotomia é possível porque projetamos enquanto ideal uma vida baseada no respeito. Ela surge no campo da teoria para que o longa-metragem use as experiências da empresária e agente funerária Anita no bairro de Bijlmer para apresentar que na prática não é tão simples assim. A obra acompanhará os esforços da empreendedora em atender da melhor forma todos os potenciais clientes do território multiétnico localizado em Amsterdã. Como qualquer projeto contemporâneo, a ideia é vender uma “experiência”, com objetivos e justificativas baseadas em nobres princípios.
Afinal, “Lidando com a Morte” tem a inclusão com palavra de ordem. A partir do momento em que grupos de religiões e culturas diferentes coabitam o mesmo espaço, surge a necessidade de dinamizar socialmente esse cenário. Porém, pelos olhos do Capitalismo, surge também a sua palavra preferida: demanda. Nesse discurso de “aproveitar” a oportunidade enquanto algo positivo, esquecemos do significado da própria palavra, que fala de tirar uma vantagem de determinada situação. E aqui vai um duro golpe para muitos: não existe resposta certa para o panorama apresentado.
A sessão do documentário nos move pela curiosidade. Anita tentará se integrar por meio de reuniões para ouvir o que os grupos têm a dizer sobre seus rituais de despedida de pessoas queridas. O diretor explora em sua câmera um olhar que evita individualizações, mostrando as pessoas em bloco, movimentos e angulações que ampliam nossa percepção todo o tempo. À exceção da própria empresária, que ganha closes e aproximações que vinculam a sua imagem à solidão. Percebendo que alguns memoriais ou velórios demoram horas, são acompanhadas de comidas e bebidas típicas e variam do luto fechado a uma festa cheia de música, ela cria um espaço parecido com um galpão, adaptável a todos os futuros consumidores. Desde banheiros com cabines maiores para receber mulheres com longas vestes vinculadas à religião muçulmana à aquisição de imagens hindus, tudo será pensado para obter satisfação garantida.
Isso porque cada altar ou local em que os ritos acontecem possuem características, organizações e até metragens particulares. No fim, o que Anita conclui é que, para reservar um centro digno de receber todas aquelas comunidades, deverá fazê-lo pelo viés da impessoalidade (ou pessoalidade forçada). E não há nada mais afastado de um ritual de despedida, baseado na sua crença, do que encontrar essa impessoalidade. Talvez a forma como lidamos com a morte seja uma das últimas barreiras dessa rotina em que tudo é oferecido em escala industrial, como se pudéssemos velar aquele que amamos pela mesma lógica de um salão de festas alugado com um “tema” para nossos filhos pequenos. Por outro lado, não se preocupar com essas possibilidades também é segregar em um tempo em que qualquer integração é bem-vinda.
Há quem não se importe com essa situação, mas os últimos meses mostraram que o exercício do luto nos é, ainda, muito caro. A impossibilidade de nos reunir para marcar essa passagem dos mortos em função de protocolos sanitários é a prova disso. Não buscamos apenas uma despedida acessível e sim a melhor e mais fiel aos nossos princípios que conseguimos oferecer. Não em um galpão frio, elaborado após pesquisas de mercado (que não deixa de ser sociocultural) como a de Anita. Nos momentos mais marcantes do filme, por exemplo, ela realiza ensaios nos quais simula velórios, como o de um bebê (que ilustra o pôster do documentário).
Dali em diante, o cineasta abandona sua busca pela não-individualização. Os encontros para tratar das demandas se transformam na captação de lutos reais, em que a verdadeira dor e sofrimento estão presentes. Por mais que as boas intenções da empresárias sejam flagrantes, “Lidando com a Morte” nos mostra como a integração cultural e a inclusão social precisam acontecer à luz da ética e do respeito – ou o capital vai seguir transformando tudo em um grande balcão de negócios.
Veja o Trailer: