Sinopse: Em “Luta por Justiça”, Bryan Stevenson (Michael B. Jordan) é um advogado recém-formado em Harvard que abre mão de uma carreira lucrativa em escritórios renomados da costa leste americana para se mudar para o Alabama e se dedicar a prisioneiros condenados à morte que jamais receberam assistência legal justa. Ao chegar lá, Bryan se depara com o caso de Walter McMillian (Jamie Foxx), um homem negro falsamente acusado de um assassinato, mas que nunca teve uma defesa apropriada por conta do preconceito racial na região.
Direção: Destin Daniel Cretton
Título Original: Just Mercy (2020)
Gênero: Drama | Crime | Tribunal | Biografia
Duração: 2h 17min
País: EUA
Nunca Basta
Depois de ser monitorado na temporada de premiações de 2020 e que rendeu apenas uma indicação de Jamie Foxx ao SAG Awards de melhor ator coadjuvante, “Luta por Justiça” passou com brevidade pelos cinemas brasileiros, estreando duas semanas antes do início da quarentena de março daquele ano. Agora está no catálogo da HBO Max, sendo uma ótima opção para quem gosta de dramas de tribunais, reproduções de casos reais e que desmascaram o racismo estrutural da sociedade norte-americana. Ainda poderá conhecer o trabalho do diretor Destin Cretton, que lançou mundialmente “Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis” (2021) esta semana – e que não terá crítica na Apostila de Cinema até sua chegada à plataforma de streaming da Disney por entendermos ainda não ser seguro ir a uma sala de cinema.
A partir do distanciamento histórico, o espectador consegue absorver melhor o tamanho da injustiça praticada contra Walter McMillian, que permaneceu anos no corredor da morte após uma falsa acusação. O protagonista do longa-metragem é Bryan Stevenson (o talentoso Michael B. Jordan). Ele faz as vezes de um advogado idealista. Na verdade, começa sua peregrinação pela atuação em favor de processos quase impossíveis quando ainda é estagiário e estudante da renomada Universidade de Harvard. Ao contrário das velhas narrativas de John Grisham (e que já problematizamos e demos nossa carga de pessoalidade suficiente na crítica de “Tempo de Matar“, lançado em 1992 por Joel Schumacher), o jovem jurista é um homem negro que, inserido em um círculo privilegiado, transforma o futuro diploma, também, em uma missão.
Portanto, “Luta por Justiça” passa longe da figura do white savior. Pelo contrário, a atuação de Eva Ansley. que será uma aliada de Bryan, é até mitigada ao longo da trama, mesmo com a contribuição da vencedora do Oscar (e, vá lá, Capitã Marvel), Brie Larson. Ela é representada em seu lugar de escuta. Seguindo os passos do personagem de 1987 a 1993 é baseado no livro do próprio Stevenson, o público conhecerá a gênese da Equal Justice Initiative, que defende os interesses de prisioneiros no corredor da morte desde sua criação em 1989.
Apesar do indicativo de estarmos diante de uma obra histórica, nada leva a crer de que as dinâmicas ali representadas mudaram muito. O simbolismo da narrativa é representada pela primeira parada de Bryan, em Monroe County, Alabama. Uma cidade que se orgulha em dizer ser “a mesma de Harper Lee“. Ali um detento questionará os motivos pelo qual ele ocupa um “lugar de branco” em Harvard, ao mesmo tempo que o estagiário de Direito começa a perceber a Justiça como reprodutora da leitura racista da sociedade, para além do equilíbrio entre justo e injusto. Em determinado momento, na parte final do filme, ele colocará em palavras o que Luiz Gama já havia percebido no Brasil há quase dois séculos – em cena tribunal parecida com a de “Doutor Gama” (2021).
Parte do racismo estrutural se dá nas próprias tratativas dispensadas a juristas e advogados negros. Quem, por exercer um trabalho na área, já se dirigiu algumas vezes a audiências, presenciou cenas em que os representantes legais foram deslegitimados por juízes ou funcionários do tribunal. As mulheres, então, sem um figurino tão emblemático quanto o terno e gravata, são “confundidas” com parentes e amigos. Um ataque grave às suas prerrogativas e que, sem dúvida, marcou a trajetória de Stevenson. O cineasta dá especial peso ao momento em que o protagonista precisa se humilhar em uma revista íntima para entrar em um centro de detenção, quando a lei diretamente o protege. A ausência de reação é um indicativo de que, independente da posição do poder, ele observa que continuará sendo vítima de racismo ao longo da vida.
Até que tem início sua relação com William, no que o homem, no corredor da morte, sentencia: “você é culpado no momento em que nasce“. O personagem de Foxx não quer ser ajudado, parece antecipar o peso desta decisão na trajetória profissional de Bryan. Sabe que as chances de êxito são diminutas e que não quer viver novas esperanças e velhas frustrações. O advogado, então, voltará para a base. Buscará nas pessoas próximas a William o amparo e os argumentos para tentar reverter a decisão fatal.
Ali, mesmo enquanto homem negro, ele é recebido com desconfiança. É interessante observar que várias questões envolvendo essas relações sociais são abordadas sem que o texto precise se fragmentar em diálogos expositivos. Fica nítido ali que outros jovens idealistas como Stevenson já bateram naquelas portas com o mesmo discurso de luta por justiça. Alguns pediram adiantamentos e mobilizações de todo o tipo àqueles indivíduos – para depois os abandonar, seja pela necessidade de sobrevivência derrotando seus princípios, seja porque – desde o princípio – via naquela missão a possibilitar de ascensão na carreira.
Em outra, mais emblemática, Bryan e Eva conversam às margens do rio Alabama e ele começa a falar da herança maldita do período de escravidão e como a ancestralidade é uma questão que sempre o tocará – e que deve ser trabalhada nas futuras gerações. Na vida real, Stevenson fez isso com a Equal Justice Initiative a partir de 2018, ao deixar de ser uma instituição focada apenas na defesa de prisioneiros no corredor da morte para inaugurar o Legacy Museum e o National Memorial for Peace and Justice. Por fim, levar o caso às instâncias superiores e conseguir a reverberação em espaços como o programa de TV “60 Minutes” são algumas das decisões importantes e que tornam esta biografia fundamental para entender as tensões sociais ampliadas no início dos anos 1990 – e que se estendem até hoje.
Precisando de um voto de confiança, ele reabrirá o caso por conta própria e chegará no ponto central da condenação: o único depoimento legitimado pelo tribunal e pelo júri integralmente composto por brancos. O depoimento a partir de um acordo entre policiais e um ficha-suja. Um homem branco, o único nos autos do processo. O único que destoou das outras falas. O único que foi aceito. Um filme de longa duração e que vai concedendo pequenas lições para que não estendamos nossas derrotas, sendo fundamental seguir lutando.
Pela ótica da relação com Eva, uma troca de intenções que nunca se consolida, “Luta por Justiça” traz a cena mais marcante, em uma obra que replica o quanto pode seu gênero. É quando ela e Bryan falam sobre o envolvimento emocional do advogado com os casos. Na visão padronizada da sociedade, comandada pela branquitude, essa característica sempre foi apontada como um equívoco. Ou, pelo menos, como uma armadilha. Essa história mostra que não é bem assim. Se colocar como parte do problema enquanto branco ou uma das vítimas da injustiça (e não um representante) enquanto negro, pode ser um passo importante para um sociedade um pouco menos racista.
Veja o Trailer: