Sinopse: Maurício (Juan Paiva) acabou de ingressar na renomada Universidade Federal de Medicina. Na sua primeira aula de anatomia ele conhece M8, o cadáver que servirá de estudo para ele e os amigos. Durante o semestre, o mistério da identidade do corpo só poderá ser solucionado depois que ele enfrentar suas próprias angústias.
Direção: Jefferson De
Título Original: M-8: Quando a Morte Socorre a Vida (2019)
Gênero: Drama | Thriller
Duração: 1h 28min
País: Brasil
Acolhimento Popular
Lançado em novembro do ano passado nos cinemas, assim que a reabertura foi autorizada, “M-8: Quando a Morte Socorre a Vida“, produção da Midigal Filmes (em parceira com a Buda Filmes), conseguiu janela curta e estreou ontem na plataforma de streaming Netflix. Ótima oportunidade (mais uma) para que o audiovisual brasileiro fora da lógica industrial das comédias e documentários da Globo Filmes, alcance maior público. Por sinal, ao finalmente conseguir assistir ao novo trabalho do diretor Jefferson De, pudemos notar não apenas semelhanças e diferenças na linguagem dos sucessos de bilheterias nacionais. A história do estudante de medicina Maurício (Juan Paiva) se erguia com potencial para ser o indicado brasileiro ao Oscar de 2021.
Longe de querer questionar o opção pelo ótimo “Babenco – Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer: Parou“, de Bárbara Paz. Mas aqui também encontramos elementos universalistas de narrativas – talvez mais voltado ao público interno, é verdade. É interessante como o cineasta se permitiu transitar ao longo do tempo, se aproximando cada vez mais do tradicional, sem perder a dinâmica de uma montagem moderna que marca sua filmografia. A vitória na categoria popular de melhor longa-metragem de ficção do Festival do Rio de 2019 é a prova de que De vai pelo caminho certo. As consequências dessas escolhas, contudo, também saltam aos olhos.
“M-8: Quando a Morte Socorre a Vida” retoma o debate sobre o racismo estrutural a partir do acesso a um jovem negro a uma Universidade federal. Maurício sofre com experiências e atos discriminatórios a todo instante. Aliás, não há preocupação em reverter essa realidade, porque o filme sabe que desenvolver redenções levaria a obra para o caminho de uma fantasia que supera a viagem ao mundo dos mortos. Não há como a sociedade mudar em um passe de mágica e aquele homem entende que o sistema o massacrará com reproduções de racismo por toda a vida. Entretanto, as aulas de anatomia, em especial, lhe incomodam profundamente. Todos os corpos reservados ao estudo, nas mesas de autópsias, são negros. Mortes, em boa parte, sem solução.
Ao ambientar a narrativa na Ilha do Fundão (onde fica o maior campus da UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro), o filme nos leva a duas questões. A primeira é que aquele território é conhecido por ser local de desova – de todo o tipo de assassinato (praticado por poderes paralelos, paraestatais ou até mesmo estatais). Quem estuda ali naturaliza a morte. Por sinal, viver no Rio de Janeiro é banalizar a morte, em vários aspectos – antes mesmo de uma pandemia tomar conta da rotina. A outra questão é que Jefferson De, sem precisar forçar didatismos, traz o conceito de cidade partida. Maurício precisa, obrigatoriamente, atravessar o Centro da cidade para que seu ônibus acesse a Avenida Brasil, que leva aos bairros periféricos do subúrbio e da Zona Oeste. Já seus amigos, todos brancos e com carro próprio, seguirão outro rumo.
Essa é a grande chave que universaliza a narrativa, porque o Rio de Janeiro enquanto cenário está posto. O diretor usa bem essa proposta, não exagera no olhar deslumbrado – mas também não glamouriza espaços. Na Lagoa, um dos locais de maior custo de vida do município, a abordagem violenta da polícia (um PM branco e outro negro) traz uma das sequências mais fortes. As diversas formas de racismo se desenvolvem (e que forma terrível de se empregar a próxima palavra) naturalmente. Quando iniciamos a trajetória do protagonista, é muito interessante a premissa de projeção da realidade. Ele se vê em M-8 (Raphael Logam), o cadáver localizado na gaveta com esse nome e número. Todavia, nem nos espaços dentro da Universidade, em que ele deveria transitar como mais um representante dos alunos, seus riscos diminuem.
Maurício, então, começa a entender o vínculo ancestral com o outro jovem, de destino trágico e com uma vida interrompida. Jefferson De informará nos créditos que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado. Por sinal, “23 Minutos” é o nome de um curta-metragem de destaque na mostra Foco Minas da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Leia a análise de Roberta Mathias clicando aqui. Uma obra que chamou tanto a atenção da minha parceira de Apostila de Cinema, que durante a cobertura ela convidou a Contramão Records, produtora jovem e independente, para falar sobre o projeto (assista à entrevista clicando aqui). Representações e narrativas que estão presentes também enquanto reflexo da carreira de sucesso construída por Jefferson De.
Há ainda em destaque grandes atores negros em pequenas participações. “M-8: Quando a Morte Socorre a Vida” traz Zezé Motta e Léa Garcia quase amadrinhando a vida pessoal e profissional de Maurício. A segunda, não à toa, é a madrinha do protagonista – e o pedido de benção é explícito. A trilha também parece confluir gerações, com músicas que vão de “Chapa o Coco”, clássico de Xis, à espetacular “Ponta de Lança”, de Rincón Sapiência. O cineasta consegue traçar um panorama e nos colocar em uma situação que nos faz refletir sobre a necessidade de humanização de certos procedimentos. A “situação protocolar” que o professor insiste em creditar a impossibilidade de M8 ter uma morte digna, precisa ser revista. Até porque o ativismo na área médica é prejudicado justamente pela falta de acesso, dependendo de uma elite branca desconstruída para a dignidade entre na pauta.
A ausência de identificação tornará o corpo do ator Raphael Logam um personagem único na carreira de De. Ele possui uma carga representativa muito forte, que o texto amarra muito bem na conclusão do filme – um epílogo muito tocante. Por fim, o que potencializa a experiência para o grande público é que o longa-metragem não abdica de uma simplicidade narrativa e de quase todos os elementos que a circundam.
Esse é o grande ponto que pode dividir a recepção da crítica sobre “M-8: Quando a Morte Socorre a Vida“. Talvez alguns entendam que Jefferson De está reiterando uma história muito trabalhada e, ao trazer uma abordagem mais folhetinesca (e que se coaduna com os rumos que sua carreira seguiu), não inova. A enquadrada da mãe, a fala da namorada, há no terço final um exercício que prioriza a palavra, que não quer deixar nada não dito. Para nós, foi visto como mais uma maneira de trazer para o audiovisual brasileiro popular um forte discurso – já que apenas a chegada de Maurício e outros jovens negros àquele espaço ali retratado está longe de ser o suficiente.
Veja o Trailer:
Clique aqui e leia outras críticas de filmes que estão na Netflix.