Sinopse: Numa manhã de verão, uma garota se afoga na piscina de sua casa. O pequeno corpo fica lá até que sua mãe o encontre. Ela deixa a outra filha, Cleo, sozinha em casa por horas. A menina fica à espera da tia, que chegará com suas primas: Leoncia, Manuela e Nerina. Em “Mamãe, Mamãe, Mamãe” cada uma dessas jovens está imersa em um microcosmo particular. Enquanto Cleo, marcada pela tragédia da irmã, é incapaz de expressar esse sentimento, sua mãe fica trancada no quarto, deprimida. Assim, Cleo, junto com as primas, mergulha no mundo feminino da infância, repleto de questões como o medo de nunca ter beijado, o medo de ficar sozinha para sempre, o medo da menstruação e a mudança irreversível em direção ao amadurecimento.
Direção: Sol Berruezo Pichon-Rivière
Título Original: Mamá, Mamá, Mamá | Mum, Mum, Mum (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 5mim
País: Argentina
Sem Estranhos para Amar
Para além do cinema argentino que grandes e médias distribuidoras trazem para o circuito “Mamãe, Mamãe, Mamãe” traz dois importantes crescimentos em tela: o da protagonista Cleo (Agustina Milstein) e o da cineasta Sol Berruezo Pichon-Rivière. Com apenas 24 anos, ela apresentou seu filme no Festival de Berlim deste ano e agora o Brasil terá a oportunidade de ver seu longa-metragem de estreia online pela programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de SP, que começa no dia 22 de outubro.
Sol nos coloca no mundo feminino, flertando com a tragédia sem deixar que o melodrama, tão atrativo por ímpeto quando somos novos, se deixe tomar conta. A história de Cleo fica marcada por um evento: o afogamento de sua irmã Erin, que a ouvimos ser chamada na cena inicial. Aliás, a relação entre as medusas, as águas-vivas e o que ocorre dentro de uma piscina, já mostra como a condução narrativa da diretora nos envolverá. Dali em diante, a personagem ficará sob os cuidados da tia e suas três primas. Uma difícil relação entre a angústia da ausência e a continuidade da vida adolescente – experiência pessoal que, a despeito do meu afastamento no lugar de fala em relação ao gênero, comungo com a trama abordada no filme. Isso é feito de modo a marcar esse protagonismo, sem deixar que as outras mulheres que dividem aquele espaço se tornem acessórios da narrativa.
A mãe de Cleo não tem condições de promover com naturalidade as relações necessárias com a menina. Em profunda depressão, sem dúvida projetando uma realidade onde a outra filha ali permanece, carrega o peso de imaginar uma alienação parental como fruto do acidente. Todavia, a maturidade não se manifesta apenas pelo choque do fato ocorrido. A protagonista, atingindo a puberdade, terá outras demandas que seu corpo lhe exige. Sem utilizar construções fantasiosas ou trazer uma mistura de inocência com o enfrentamento da realidade, Pichon-Rivière faz de “Mamãe. Mamãe, Mamãe” uma obra profunda, dura – com todas as quebras dessa ótica baseadas exclusivamente no real.
São os momentos em que Milstein constrói em seu trabalho uma menina que, diante de novos acontecimentos, conta com os relacionamentos possíveis para lhe ajudar. Um período em que naturalmente lidamos com a descoberta da sexualidade e com as transformações do corpo, ainda há espaço para Cleo ser também um pouco criança. A diretora, então, tira essa inocência do campo das verbalizações ou até de um onirismo (que quase sempre se revela uma zona de conforto de produções parecidas) e traz essa leitura com pequenas interrupções narrativas que acabam se destacando. O caderno de recordações da protagonista, com folhas secas e balões de gás, um saudosismo precoce ampliando pela ausência da irmã, é um exemplo que se revela um dos grandes momentos do filme.
Há, ainda, uma sequência fundamental para entender essa sensação de transição do momento pelo qual ela passa. Reunidas em uma mesa, aquelas mulheres – de diferentes idades e passando por inúmeras experiências dentro da mesma casa – conversam sobre as possíveis maldades que a vida pode trazer, um misto de trocas e conselhos. Então, segundos depois, duas meninas começarem uma brincadeira com as mãos.
Sol Berruezo Pichon-Rivière, ao lado de Sandra Wollner, de “O Problema de Nascer“, se destacam nesse início de maratona de Mostra SP por atualizar uma linguagem sobre representação de gênero, principalmente na adolescência. Porém, se a austríaca segue uma abordagem com forte apelo ao fantástico, colocando a androginia como elemento central, aqui as formas utilizadas são totalmente mundanas. Quase como se Europa e América Latina se invertessem em suas tradições, um outro reflexo positivo de um globalização audiovisual. Alguns pensavam que o circuito de festivais, ao se entender em tipos de produções que parecem ter uma fórmula de construção própria para serem selecionadas, se tornaria repetitivo – ou, evidentemente, formulaico. Pelo contrário, a pluralização já fugiu do escopo territorial e até mesmo de gênero. Uma jovem como Sol presente em Berlim (onde ganhou uma menção especial do Júri da seção Generation Kplus, onde foi apresentado) é a prova de que não há mais limites para o garimpo de realizadores e que as possibilidade de expansão da linguagem também não encontra freios.
“Mamãe, Mamãe, Mamãe” é uma grande proposta de ampliação de olhares sobre vários mundos. Em uma história de cenário único e poucas interações, alcança recorte de gênero, de idade e ainda consegue individualizar cada uma de suas personagens e seus próprios dilemas. Uma diretora que ainda veremos representar o cinema latino-americano com muito orgulho, pela maneira como ela compõe uma narrativa muito bem delineada e quando a materializa em seu produto audiovisual, o faz com uma notável maestria, tanto na unidade da obra como na consciência objetiva com a qual coloca todos os elementos em cena. Esperamos novas incursões no cinema da cineasta. Sem fantasias, virtuosismos ou drama excessivo, é uma grande experiência ver o mundo pelo olhar de Sol Berruezo Pichon-Rivière.
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