Mate-o e Saia Desta Cidade

Mate-o e Saia Desta Cidade Crítica Filme Animação Mostra SP Mariusz Wilczyński

Logo Mostra SP 2020Sinopse: Para fugir do desespero após perder as pessoas mais importantes da sua vida, o protagonista desta animação se esconde em um refúgio de memórias, onde todos aqueles que lhe são queridos ainda estão vivos. Com o passar dos anos, uma cidade cresce em sua imaginação. Certo dia, heróis da literatura e outros saídos de desenhos animados da infância aparecem para morar ali, sem serem convidados. Quando protagonista de “Mate-o e Saia Desta Cidade”, então, descobre que todos envelheceram e que a juventude eterna não existe, ele decide, levado pelos personagens que habitam sua imaginação, voltar ao mundo real.
Direção: Mariusz Wilczyński
Título Original: Zabij to i Wyjedz z Tego Miasta | Kill It and Leave This Town (2019)
Gênero: Drama Fantástico em Animação
Duração: 1h 28min
País: Polônia

Mate-o e Saia Desta Cidade Crítica Filme Animação Mostra SP Mariusz Wilczyński Imagem

A Prisão da Existência

Usando um bonito misto de técnicas de animação em 2D e 3D e desenhos feito à mão, “Mate-o e Saia Desta Cidade“, que  estreou mundialmente no último Festival de Berlim, é uma bonita fábula sobre como a memória, idealizada como conservadora de bons momentos, pode se tornar uma antagonista que nos condena a uma prisão da falsa percepção de existência. Óbvio que ser é muito mais do que estar e o diretor Mariusz Wilczyński desmembrará essa falsa impressão de que devemos olhar sempre para a frente ao longo da obra. Apesar de estarmos diante de um selecionado para a Competição Novos Diretores da 44ª Mostra SP, o cineasta é uma personalidade na Polônia.

Artista visual que rompeu a barreira territorial, foi o primeiro e único realizador de animação do país a ter suas produções apresentadas em retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 2007. Por sinal, nessa época ele já estava trabalhando no filme que agora apresenta, o primeiro em longa-metragem (o faz desde 2006). O músico, performer, apresentador de TV – dentre outros – parece iniciar um recomeço, mesmo ambientando sua produção em sua zona de conforto: o surrealismo com apego total ao onírico.

Wilczyński escolheu a própria biografia para costurar a narrativa de “Mate-o e Saia Desta Cidade” e venceu o Prêmio do Júri do tradicional Festival de Annecy, que completou sessenta anos em junho deste ano no formato online. Traz a história de um homem, o próprio Mariusz, que – cansado da procissão do luto de quem já perdeu vários amigos e entes queridos – decide criar um mundo onde eles permaneceram. Um ideal pelo qual o próprio artista, de forma muito poética, aplicará um olhar crítico. Para isso, ele misturará imagens e sons da infância e de todas as fases da vida. Só não temos cheiros, toques e gostos porque a experiência sensorial não foi possível, mas é provável que o diretor sonhe com o dia em que uma apresentação deste tipo seja completa.

Nascido em meados da década de 1960, a trilha musical que acompanha o filme parece extraída de sua juventude. Vai do rock clássico, que flerta com o blues, até o progressivo da cena final. Aliás, um clímax tão longo quanto o outro filme que assistimos mais cedo (o espanhol “Lua Vermelha), mas que ficará marcado pela música que o acompanha (e que deixamos ao final do texto), escrita pelo finado Tadeusz Nalepa, líder do famoso grupo local Breakout. De 1982, quando Mariusz tinha 18 anos, o som que vem do rádio é o da partida entre Polônia e Bélgica pela Copa do Mundo.

Afastadas as reminiscências sonoras, a linguagem visual é puro espetáculo. Diálogos entre uma mulher cortando cabeças e rabos de peixes para, mais adiante, colocar pessoas no lugar dos bichos. Estantes de cérebros como se pudéssemos armazenar nossa existência tal qual um conjunto de HDs com infinitos gigabytes de filmes que nunca veremos. O mergulho no mundo dos sonhos é a viagem que precisávamos depois de dois festivais (É Tudo Verdade e Olhar de Cinema) que – em diferentes níveis de narrativa – usavam as referências da realidade como mote. Ficaria até difícil a conexão com esse desapego pelo verossímil, mas Wilczyński é tão consciente da sua criação, que a sessão se transforma em uma fruição estética.

Ao sair da construção do drama inicial, onde caracteriza as perdas e traz uma dura conversa com a mãe no leito de morte, “Mate-o e Saia Desta Cidade” usa elementos de transitoriedade e de descarte de tempo. Com isso, nos faz refletir sobre a finitude necessária. Sempre nos trazendo navios, trens, aviões – com personagens apenas existindo ou fazendo palavras-cruzadas. Até que ponto seria bom termos todos aqueles que amamos sempre conosco? Ao perceber que a imortalidade não significa a conservação de valores e vivências, o protagonista se frustra com o próprio desejo. Então, começa a trafegar pela própria história, sendo um adulto no próprio berço, até que retorna para o hipotético momento da concepção, carregada de romance e sensualidade.

No caminho ele revive alguns conselhos da mãe e ainda traz, em desenhos incríveis com passeio de câmera em várias perspectivas, a costura do fim de uma autópsia. Ao afastar a morte, o realizador acaba se tornando parte dela. É possível compreender o dilema de uma mente como a de Wilczyński. Inserido no mundo das artes, ele tem em suas mãos a chance de falar do que nos aterroriza de maneira lúdica. Deixar de existir, ou de coexistir com nossos amores é parte de um processo. Só que, ao mesmo tempo, grandes artistas – dignos de apresentações em galerias, como ele – vão envelhecendo com a certeza de que deixam aqui nesse plano uma fração imortal através de si, através das suas criações.

Ao trabalhar tantas mortes, ele acaba tornando “Mate-o e Saia Desta Cidade” uma aceitação deste fato. Em seu surrealismo de estética industrial, com traços à mão, vemos a vida do protagonista diante de nossos olhos. É como se ele cansasse de construir sonhos enquanto há tantas vidas sendo interrompidas. Durante a sessão do filme ou a leitura desse texto, cérebros foram desligados e amores separados. Duas consequências de um só fato, a morte. Mesmo que fosse possível colocar tudo o que queremos em uma caixa e nela viver, não seria essa a solução. Um estado perene de subsistência não faria sentido. Nossas vidas devem ser como os navios e os trens de Mariusz Wilczyński.

 

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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