Sinopse: O documentário conta a trajetória dos 50 anos de carreira de Sidney Magal. Os momentos mais significativos da vida do cantor, dançarino, ator e dublador que se tornou um ícone da música popular brasileira. O homem por trás do ídolo, sob o ponto de vista dos próprios participantes da história.
Direção: Joana Mariani
Título Original: Me Chama que Eu Vou (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 10min
País: Brasil
Magal e Magal
“Me Chama que Eu Vou” é a segunda incursão da Globo Filmes em documentários musicais na programação do Festival de Gramado de 2020. Com uma seleção de apenas sete postulantes ao prêmio, pode soar exagerado – mas é inegável que este é um subgênero muito popular no Brasil e que costuma entregar bons filmes. Se aplica ao longa-metragem dirigido por Joana Mariani quase tudo o que foi falado sobre “O Samba é Primo do Jazz“, apresentado no festival há dois dias. Tanto sobre o modus operandi, quanto sobre benefícios e malefícios desta produção oligopólica que reúne acervo e equipes da própria Globo em parceria com Canal Brasil e Globo News, desdobramentos dela mesma.
Mariani, que surgiu muito jovem como produtora do espetacular “O Cheiro do Ralo” (2006), repetiu as chuvas de prêmios conquistados no Festival do Rio e na Mostra São Paulo logo no ano seguinte produzindo outro documentário musical: “Fabricando Tom Zé” (2007). Na última década, foram quatro trabalhos como diretora e parece ser este um caminho sem volta para a realizadora, que em 2018 usou a ficção para flertar com o popular em “Todas as Canções de Amor“, usando um elenco recheado de globais de sucesso.
A diferença é que Sidney Magal, o biografado, sempre foi uma figura mais midiática do que Alcione. Mesmo com boa extensão vocal, chamou a atenção pelo conjunto de músicas-chicletes, figurinos ousados e danças rebolativas. O primeiro passo do próprio protagonista do documentário é se defender das acusações de que foi um produto forjado pelo mercado fonográfico, como se aplicassem já na década de 1970 os algoritmos de sucesso pelas poderosas gravadoras. Com isso, Mariani destrincha mais o passado referencial, o contato com Vinícius de Moraes, o trânsito pela bossa nova e a descoberta da persona Sidney Magal por Sidney Magalhães – que ele sempre fez questão de frisar que são totalmente diferentes.
Até que chega o momento de “Me Chama que Eu Vou” que ele trata abertamente desta acusação. Não menciona nas entrevistas para o filme, mas há um resgate de arquivo em que – de forma ousada, porém, muito pertinente – a montagem resgata a letra de “Arrombara a Festa“, um clássico perdido de Rita Lee. Por alguns momentos, pensamos que não seriam tão diretos. Essa forma de traçar as origens, passear pelo sucesso e ostracismo (quando atuou em novelas e em musicais no teatro) e chegar na simbologia da figura de Magal como um dos responsáveis por romper a dicotomia tacanha da alta e baixa cultura, do erudito e do popular ou do brega e do chique, enriquece um produto que caminhava para exagerados resgates de entrevistas e participações em programa de auditório.
Porém, não há como deixar de fora essa ferramenta e a cineasta se apoia bem nela. Como dito, Magal sempre foi uma interessante pauta para a televisão, em todas as fases de sua carreira: símbolo sexual até o início dos anos 1980, cantor romântico em decadência na década que lhe seguiu, e grande nome da lambada com a canção que dá título ao filme. Por sinal, a Globo não dá ponto sem nó e “Me Chama que Eu Vou” é a obra que – no meio de tantos hits – vincula o artista à empresa, que vê como grande atrativo da nova forma de consumir audiovisual (o streaming) mais de cinco décadas de telenovelas – e “Rainha da Sucata” é um destaque, óbvio. Algumas quebras de ritmo funcionam, outras não. Tenta flertar com um musical propriamente dito ao colocar o protagonista junto a um piano. Ele ilustra algumas passagens da vida e referências a partir dali, como quando canta “Olha”, sucesso de Roberta Carlos, representando os primeiros encontros com a esposa de quase quarenta anos de relacionamento. Momentos bonitos, mas que em alguns momentos voltar a flertar com a reportagem televisiva.
Na mitologia dos setenta anos de TV no Brasil, figuras importantes marcam presença no documentário. Entretanto, o grande trunfo do longa-metragem é discutir como a música foi usada como ferramenta de manutenção de divisão de classes. A MPB que tanto celebramos e naquele período se propunha a discutir o Brasil, não via com bons olhos a música dita brega – que livros como “Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar” do pesquisador censurado pelo Rei, Paulo Cesar de Araújo apresentam outra visão. Talvez resida aqui um pouco da responsabilidade pelo afastamento do povo com as tentativas de salvá-lo de governos autoritários. O Cinema Novo também, mas isso é papo para outras biografias que fatalmente chegarão a nós. Minha geração lembra do resgate que, de forma até surpreendente, Magal destaca. Partiu de sua capa da revista Trip e terminou com uma estreia e a presença constante na programação da MTV da versão repaginada de “Tenho”.
“Me Chama que Eu Vou” nos traz a personalidade de um homem que, apesar de garantir ter bifurcado a vida pessoal e profissional, foi movido pelo desejo de ser amado e por acreditar, desde novo, que viver no mundo da fantasia da arte que ele cria é o único caminho possível para um mundo que parece perdido. Talvez por isso ele, assim que estabilizou sua carreira, deixou o Rio de Janeiro e construiu seu próprio oásis na Bahia. Ele segue nos dizendo que há um Sidney Magalhães por trás de tudo isso. Mas a consciência de sua posição e de todo o processo que o fez ser Sidney Magal, digno de um documentário apresentado no Festival de Gramado, torna cada vez mais difícil acreditarmos que ele não é, na verdade, único.
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