Sinopse: Em “Medo”, Svetla é uma viúva que, recentemente, perdeu o emprego como professora. A vila onde mora fica próxima à fronteira da Bulgária com a Turquia e, frequentemente, refugiados aparecem por ali. Um dia, enquanto caçava em uma floresta, Svetla se depara com um migrante africano, fato que suscita uma transformação dramática em sua vida. A mulher, então, é forçada a se rebelar contra as pessoas da comunidade, enquanto elas incitam o refugiado negro a deixar a aldeia imediatamente.
Direção: Ivaylo Hristov
Título Original: Страх (2020)
Gênero: Drama
Duração: 1h 40min
País: Bulgária
Abstratos e Concretos, Individuais e Coletivos
A boa notícia é que o representante da Bulgária no Oscar 2022, o ótimo drama “Medo“, ficou disponível de forma gratuita na plataforma do Sesc dentro da programação da mostra Perspectiva Internacional da 45ª Mostra SP. A ruim é que o limite de visualizações fez com que durasse poucas horas essa oportunidade de assistir à obra do veterano ator e professor Ivaylo Hristov.
É dele também o roteiro, que atualiza a narrativa sobre uma protagonista que se torna pária em sua comunidade por defender o trato humanista a um forasteiro. Svetla (Svetlana Yancheva) começa a história dividindo suas visões sobre a rotina com o marido, diante de sua lápide do cemitério da vila onde mora na fronteira com a Turquia. Professora, uma profissão cada vez mais desvalorizada, ela entra na fila do desemprego perto de se aposentar e se apega a esse momento de privacidade para projetar um futuro no qual encontra a paz – e reencontra seu amor.
Após mantê-lo atualizado, ela toma o caminho de casa. Outro dia, durante uma caça na floresta, ela encontra um imigrante do Mali que tenta chegar ao território europeu andando até chegar à Alemanha – e basta abrir o mapa para identificar que ele atravessou, pelo menos, uns seis países. Ao contrário da opinião pública, que aplica a visão xenofóbica e vê qualquer estrangeiro que tenta adentrar os domínios daquele vilarejo como números, Svetla lhe aplicar o olhar da compreensão. Por óbvio que esse expediente é potencializado com a sugestão do patrulhamento de fronteira: amarrar o homem em uma árvore.
“Medo” traz um artifício clássico de tramas desta natureza, que é a da barreira idiomática. O imigrante africano fala apenas inglês e é preciso que os dois leiam movimentos e tons para desmistificar um pouco do discurso do outro em seus diálogos. Enquanto isso, as outras pessoas usam esse aspecto como mais uma desculpa para colar a imagem de risco assustador ao bem-estar da vila. O que eles não esperavam é que o rapaz encontrasse alguém disposto a lhe auxiliar por vínculos que nem eles compreendem bem. Svetla é uma mulher aplacada pela solidão, com um bloco de sua existência que não cumpre qualquer funções – como denota o ato de dar as roupas do falecido marido para o outro vestir – ao mesmo tempo que sente a dor da descartabilidade em uma sociedade que acaba de dizer que não precisa mais de seus trabalhos.
O irônico é que essa mesma comunidade dará grande peso a todas as atitudes que objetivam proteger o estranho. Ela é recriminada por não reproduzir a ciranda discriminatória que se tornou regra em um mundo recheado de fluxos migratórios. A globalização é linda, quando serve aos nossos propósitos de consumo. A meritocracia é espetacular, quando é base para o nosso sucesso. Para cada pessoa que tem dez, nove não tem nada ou muito pouco. O que você faz quando uma delas aparece na sua frente? Será que não a trata como um número, um problema, uma estatística? No texto de Hristov, essa ideia de que os estrangeiros que chegam carregam consigo um “custo” é constante no desenvolvimento da trama.
O medo como título é de todos os agentes envolvidos. Um homem desesperado por melhores condições de vida, disposto a encarar territórios que são verdadeiras incógnitas. Uma mulher que não sabe o que o futuro lhe reserva, posto que abandonada e descartada em seus saberes. Uma sociedade que sente o risco de não dar conta da demanda de cidadãos de outros territórios, que podem encontrar ali uma esperança. Aos poucos a visão que ganha corpo é aquela que oficializa o nacionalismo e o fascismo.
“Medo” é um microcosmo social que tem como clímax o discurso de uma Prefeita que legitima o ódio. Talvez soe repetitivo para quem oferece um olhar humanista para o audiovisual contemporâneo. Porém, nunca é demais para ocupar espaço de grandes festivais e ganhar projeção com a chance de participar da temporada de premiações. Svetla, no caso, é uma professora que vem para repetir uma lição que parecemos incapazes de aprender.
Veja o Trailer: