Sinopse: “Meu Pretzel Mexicano” abre com clipes em preto e branco de pilotos durante a Segunda Guerra Mundial na Suíça, legendados com trechos do diário de Vivian Barrett. Ela fala de si mesma e de seu marido, Léon, que perdeu parcialmente a audição em um acidente de avião e não conseguiu mais voar. A vida charmosa do casal se desdobra em trechos de diário e filmagens feitas por Léon, sobre quem também aprendemos que desenvolveu um antidepressivo bem-sucedido e tinha obsessão por muitas formas diferentes de transporte.
Direção: Nuria Giménez
Título Original: My Mexican Bretzel (2019)
Gênero: Romance Experimental
Duração: 1h 11min
País: Espanha
Cápsula Romântica do Tempo
“Mentiras são formas diferentes de contar a verdade“. A frase que abre “Meu Pretzel Mexicano” é apenas uma das muitas sentenças que tornam esse um dos mais belos romances assistidos nos últimos tempos. Nuria Giménez traz uma proposta que assume um experimentalismo perfeito para integrar a programação do Festival Ecrã, ao mesmo tempo que leva o espectador a refletir sobre fases e formas como um relacionamento se apresenta. Nessa abertura, a protagonista, dona do diário no qual os escritos se baseia, parece antecipar uma expressão muito usada atualmente: a minha verdade. Não há como Vivian trazer uma perspectiva de León. Mesmo que passemos décadas ao lado de alguém, jamais saberemos o que se passa na sua cabeça.
A cineasta, então, insere a coruja como representante dessa busca por conhecimento. Ela retornará algumas vezes, sempre que elucubrações meramente opinativas nos coloque na dúvida sobre o que a narradora nos quer transmitir. O companheiro, assumindo as palavras dela como verdade real, é um homem com o eterno desejo de fuga. Até uma característica dessas pessoas ele tem em destaque: se sente melhor voando do que encarando o mundo. Pois esse mundo desaba quando ele perde parte da audição e não pode mais ser piloto. Dali em diante, sua existência consistirá em uma maratona de novas obsessões, novas formas de fuga. Só que Vivian, no final das contas, é a realidade – e fugir dela terá um preço.
Giménez compõe muito bem as imagens que provocam esse debate sobre o quanto levamos acidentalmente à falência os nossos relacionamentos. As frases do diário não são verbalizadas e isso traz a “Meu Pretzel Mexicano” algumas características. A principal é que demanda do público uma atenção diferente, o que pode tornar a experiência única aos consumidores de obras mais tradicionais. O som do filme é praticamente composto por aqueles emitidos por meios de transportes (trens, aviões, barcos) ou objetos que serve a esta função (patins, esquis). Mais uma obsessão de León. A mais interessante das possibilidades, porém, é que o filme cumpre sua função de expor um diário de uma desconhecida. Inclusive nos forçando a imaginar o tipo de voz e a entonação de cada frase.
Isto porque Vivian não possui a coerência típica de uma personagem ficcional. Assim como cada um de nós, cada dia ou cada momento de um dia tem a capacidade de mudar nosso comportamento, nosso humor. A diretora explora essa ideia de folheamento do diário e nos deixa preencher as lacunas da maneira como imaginamos. As passagens mais poderosas de “Meu Pretzel Mexicano” acabam sendo as reflexões de Vivian, mais do que a sua narrativa. Quando ela diz que os misantropos são as pessoas que mais se amam e como a Humanidade se une muito mais pelo ódio, estamos no meio de um diálogo com uma mulher que acaba de vivenciar a Segunda Guerra Mundial. Mesmo assim, pouco parece ter mudado.
O amor é maior que o ódio, dificilmente alguém negará isso. Mas o que nos leva a não nos conectar pelo amor? Por que acabamos perdendo a sintonia quando o sentimento transmuta, como acontece com Vivian e Léon? Amarras de comportamento que não deixaram aquela mulher amar livremente, ao mesmo tempo que a fez se sentir culpada por não nutrir o mesmo carinho pelo outro. É quando a realizadora retoma a figura da coruja dentro de um pesadelo. Saber, conhecer, vira o terror de Vivian. Ter a consciência da finitude do amor – mesmo que o mantra de ser feliz para sempre siga intocável – aumenta a sensação de sufocamento ao invés de ajudar a superará-la.
O espectador passa quase todo o tempo querendo gritar, se fazer ouvir a Vivian. Suas palavras, tão lindamente escritas e sem nenhuma voz, revelam novos sentidos para um relacionamento, novas formas de admiração. Amor livre passa pela ausência de culpa nas manifestações espontâneas dos nossos desejos, algo que a protagonista tenta criar a partir de seu diário. Não consegue. Eis que surge, então, uma das frases mais lindas que já encontrei em uma obra audiovisual: “prefiro a liberdade do vazio à escravidão da memória“. Quase como um novo prólogo, acompanhado de drama do arrependimento de uma decisão.
“Meu Pretzel Mexicano” é um cápsula romântica do tempo. Mas que só traz tristeza. Seus créditos finais adicionam uma outra maneira de se enxergar o drama causado pela frustração de um amor que se esvaiu. Vivian se foi quarenta anos antes de Léon, que em algum momento leu esses diários. Pairou sobre ele a angústia do acesso às memórias de alguém que sempre esteve ao seu lado – e ele, como imaginamos, nunca conheceu de verdade.
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