“Mirador”, produção brasileira, estreou nos cinemas. Relembre nossa crítica!
Sinopse: Maycon é um boxeador que treina para retornar aos ringues enquanto divide seu tempo com dois subempregos. Pai de Malu, fruto de uma relação casual que teve com Michele, ele tem sua vida revirada quando se vê na situação de ter que cuidar da filha sozinho. Entre a rotina exaustiva de treinos e bicos para sobreviver a maior luta de Maycon ainda está por ser vencida: tornar-se pai.
Direção: Bruno Costa
Título Original: Mirador (2021)
Gênero: Drama
Duração: 1h 34min
País: Brasil
A Diversa e Única Forma do Olhar
Um drama familiar com os atravessamentos da sociedade brasileira tresloucada. Desromantizando uma clássica narrativa da relação entre filho e pai (ou outro homem que receba responsabilidade semelhante), “Mirador“, apresentado na Mostra Praça da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes, encontra um tom e um ritmo ao final de seu primeiro terço que nos permite trafegar por muitas questões – sem deixar a história proposta flutuar. O diretor Bruno Costa faz uma abordagem a partir de elementos de fácil conexão do espectador, vinculando de maneira forte a masculinidade no protagonista Maycon (Edilson Silva).
O primeiro é o boxe como mote da trama. A sequência inicial é de grande qualidade técnica principalmente no som. Em virtude de seguirmos há quase um ano assistindo filmes em looping dentro de casa, é cada vez mais raro encontrar uma mixagem que nos faça mergulhar na cena – e aqui conseguimos. O segundo elemento se dá no desenvolvimento, sendo esta a escolha mais acertada do cineasta em todo o processo. Bruno não tem como não chegar a um ponto da narrativa em que o personagem se vê de frente ao “desafio” de ser um pai solo. Um ponto de chegada que, geralmente, nos leva aos extremos da comédia ou da apelação sentimental. Muitas histórias assim já foram assim contadas e é notável o equilíbrio alcançado pelo diretor em suas movimentações. Até acontecem interações que nos provocam isso, mas com o naturalismo que já virou marca das construções dramáticas do cinema brasileiro nos últimos tempos.
A palavra desafio surge no parágrafo anterior entre aspas porque “Mirador” não consegue se desvincular do olhar da sociedade sobre os homens, um machismo enraizado que nos eleva a heróis em situações como a vivida por Maycon. Todavia, são muitos os diálogos difíceis dessa mesma sociedade com aquele trabalhador, jovem negro, migrante pernambucano em Curitiba, que se divide entre alimentar o sonho de ser lutador com um emprego formal. O resultado é que ele não se deixa seduzir por esse ideal de heroísmo. Maycon tem uma consciência que o leva a concessões e consentimentos.
Uma dessas submissões é a de se deixar ser explorado enquanto corpo, quando tenta deixar para trás a falta de perspectiva do trabalho como lavador de pratos em um restaurante. Momento em que o leque de questões se abre mais para falar não apenas da precarização de funções como essa por ele exercida, ainda que formalmente. A atividade paralela no boxe, com a intenção de ser profissional, atinge diretamente essa zona cinzenta que transformou a vida de quase todos nós. Temos um personagem que não sabe mais identificar e diferenciar em que momento ele, de fato, não está trabalhando. O Eu-Empresa (para mencionar outra produção de Tiradentes, que será apresentada na Mostra Aurora) e a Vida-Empreendimento.
Porém, no meio de todo esse trajeto, há uma criança. A menina Malu é vítima por todos os lados que se olha. A alienação parental a partir do sumiço da mãe é apenas uma delas. Sabiamente, a fuga de Michele enquanto fato se incrusta na narrativa com a mesma ausência de um julgamento limitante que o não-heroísmo de Maycon (à exceção de um “veja a merda que ela fez” em um diálogo) Ao contrário do desenvolvimento romantizado, que mencionamos ser um afastamento acertado de “Mirador”, não temos aqui uma cronologia que faria tudo ser edificante, ao ponto de chegarmos ao fim como se aquele homem e sua filha formassem uma família de comercial de margarina – contrariando a lógica da sociedade na qual está inserida.
Pelo contrário, a judicialização da guarda de Malu surge a partir de um impedimento burocrático quando seu pai tenta matricula-la em uma creche. Esqueça a pasteurização embolorada de produções como “Kramer vs. Kramer” (1979) que o cinema tido como comercial recicla com leves alterações de elementos de gênero e atualizações de representações a cada nova década. Porém, vale mencionar que certo tradicionalismo torna “Mirador” mais próximo de um público à procura de boas histórias. Não à toa, chega na Mostra Praça e se firma enquanto obra capaz de suscitar reflexões com ligeiras mudanças na maneira de explorar sua trama.
A Apostila de Cinema não gosta de hierarquizar filmes ou tecer juízos comparativos. Mas, aqui, vale o registro de que é – de certa maneira – uma forma de aprimorar premissas que pensávamos que tínhamos nos cansado de ver, muito porque Bruno Costa joga sua luz com holofotes bem mais potentes (e mesmo assim tenros) do que nos acostumamos a ver.
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