Mostra Lona 2020: Linguagens e Narrativas

Mostra Lona 2020: Atravessamentos

Mostra Lona 2020: Brooklin | Associação de Moradores do Guararape | Território Ocupado | Rap, o Canto da Ceilândia

Brooklin

Grandes Leques de Linguagens e Narrativas

Dentro da programação da Mostra Lona 2020: Atravessamentos a Sessão 06, disponibilizada em 27 de maio, viajou no espaço e no tempo (em seus mais diversos conceitos) para mostrar como a questão da territorialidade pode ser trabalhada pelo cinema em total desapego com fórmulas pré-estabelecidas na dita “linguagem audiovisual”. São quatro curtas-metragens: “Brooklin” (2019), “Associação de Moradores do Guararape” (1979), “Território Ocupado” (2018) e “Rap, o Canto da Ceilândia” (2005). Em comum há muito mais do que objetos e fatos geradores. Todavia, o que desperta o foco do espectador é justamente as diferenças.

Brooklin” (2019) parece nos colocar em alguma das obras mais recentes de Adirley Queirós, como “Branco Sai, Preto Fica” (2014) e “Era uma Vez Brasília” (2017) – o mesmo Adirley que encerrará esta sessão. Sai Ceilândia, entra Belo Horizonte. Em um futuro próximo, o toque de recolher está oficializado – podemos discutir se, de certo modo, ele já não está institucionalizado em muitos territórios brasileiros. O Coletivo CineLeblon assina a direção, mas é fundamental para o apreço da obra a montagem desempenhada por Pedro Carvalho. A composição a partir de fotografias, provocando a sensação de incompletude de algumas sequências, dá um ar policialesco a essa distopia – onde o exercício da liberdade e a expressão do território como extensão do viver lhes são negados.

Quando adolescente, fui instigado a ler na escola a coletânea de contos “O Buraco na Parede” de Rubem Fonseca e tive meus períodos de paixão pela narrativa submundana com a qual alguns autores lhe seguiram nesse filão. E o Coletivo CineLeblon consegue adicionar formas de se vincular afetivamente com as urbanidades ligeiramente padronizadas dos Estados do Sudeste. Usa citações, como “Negro Gato“, canção composta em 1964 por Getúlio Cortes – até “A Carne“, composição de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti, originalmente lançada em 1998 pelo grupo Farofa Carioca, mas imortalizada em 2002 na voz de Elza Soares.

Somente essa viagem multidimensional de “Brooklin” já seria o suficiente para abrir debate. Exibido no Cine-Tenda da 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes há menos de seis meses (que pareceram seis anos), parece ter envelhecido no sentido de ser cada vez menos futuro próximo e cada vez mais presente. É possível que a longa narrativa e a ausência de movimentação instigue menos o espectador mais imediatista. Porém, não há como não se sentir compelido a pensar sobre aquela realidade de Brooklin imposta pela Guarda do Estado Verdadeiro a partir do nosso confinante home office jamais pensado por George Orwell.

O curta seguinte, “Associação de Moradores do Guararape” (1979), segue um caminho bem diferente no que tange à linguagem. Sergio Péo, paraense de nascença, porém carioca desde a adolescência, foi pioneiro em usar sua formação em arquitetura e urbanismo para entregar obras audiovisuais fundamentais para entender a questão da habitação no Brasil. O filme apresentado, por exemplo, foi o vencedor na categoria de curta-metragem no Festival de Gramado no ano em que foi apresentado.

“Associação de Moradores do Guararape” entrevista moradores da Favela Guararapes sob o risco de remoção no ano de 1967. Localizado no Cosme Velho, bairro de classe média-alta do Rio de Janeiro, é mais do que um documentário etnográfico. É um registro histórico da tão fundamental necessidade de auto-organização de grupos que, constantemente, assistem seus direitos serem vilipendiados. Os mais fundamentais deles, por sinal.  No momento do festival, em meio à pandemia de Covid-19, há uma conexão direta com o Episódio 3 da websérie “Na Fila do Sus”, no que diz respeito a essa saída de romper com a lógica opressora e conquistar a auto-suficiência. Não apenas moradia, mas saneamento e saúde – como consequências e desdobramentos da luta.

Péo faz isso de forma direta, com discursos frontais dos documentados – deixando ao espectador mais interessado procurar saber sobre as políticas de habitação existentes no Brasil nos últimos sessenta anos.

Saindo do Sudeste, o curta “Território Ocupado” (2018) nos leva à vila pesqueira Garapuá, na Bahia. Vítimas de especulação imobiliária creditada à atividade turística. Certamente movimentada pelas mesmas famílias de grandes proprietários que praticam os lobbys necessários para a sanha destruidora do Estado mostrada em “Associação de Moradores do Guararape”. Ao sair da obra de Sergio Péo e chegar a essa, realizada pelo Coletivo Cinema e Sal a partir de uma oficina de cinema comunitária, temos a real noção de como o “fazer cinema” no Brasil extrapolou a simples facilidade de acesso a ferramentas mais leves, baratas e modernas.

A horizontalidade na produção audiovisual é o que há de mais apaixonante no Cinema Brasileiro dos últimos anos. Há em “Território Ocupado” muito do que funciona e do que há de reflexo nessa pluralidade estética e narrativa. Em pouco mais de dez minutos há um documentário em curta-metragem informativo, nada apelativo e que – sem colocar palavras e intenções nos grupos ali retratados – nos permite concluir como a elite, em qualquer território onde exerce sua relação de poder, entende que há pessoas e “quase pessoas”. A maneira como, flagrantemente, a única fonte de água doce da região é tratada, já concede argumentos suficientes para essa conclusão.

Voltado ao debate acerca do “fazer cinema”, a obra que encerra a Sessão 06 da Mostra Lona nos transporta para o Planalto Central do início do século XX e nos ajuda a entender como estamos diante de um processo e não um fenômeno espontâneo (tanto política quanto artisticamente). “Rap, o Canto da Ceilândia” (2005), curta-metragem de estreia de Adirley Queirós, é uma pedra fundamental tanto na sua carreira quanto na de Marquim do Tropa, que seguiria como parceiro do cineasta estrelando seus longas mais adiante.

A princípio, um documentário tradicionalista – se olhado com os olhos de 2020. Muito eficiente ao abordar Ceilândia como território e o desdobramento da produção do rap local, uma manifestação cultural que sofre com sua marginalização até hoje. Todavia, o espaço dado para discutir a receptividade da comunidade de um representante que faz sucesso é um dos pontos altos de “Rap, o Canto da Ceilândia”. E, claro, a parte final que – ao falar de Brasília – diz que é um território que “ainda não vamos”. Um prenúncio de toda as desconstruções e reconstruções desse espaço urbano limítrofe Distrito Federal x Cidades Satélites, que Queirós aprimora a cada novo projeto.

Uma outra maneira de se registrar a história do cinema nacional e de obras que tratam do território. A produção mais antiga teve início em 1967, enquanto a mais nova data de 2019 – apresentada em importante festival ainda esse ano. Narrativas ficcionais (ou podemos chamar, em tom provocativo, de semi-ficcional), documentários tradicionais, etnográficos ou totalmente independentes. Cinema de guerrilha, comunitário ou a partir de projetos bem-sucedidos de captação. A riqueza da Sessão 06 da Mostra Lona, porém, ultrapassa o leque de linguagens.

Discute territorialidade a partir da limitação (com a Guarda do Estado Verdadeiro de “Brooklin”), da conquista (afastamento da remoção e consolidação da moradia em “Associação de Moradores do Guararape”), da reverberação das lutas (toda a mensagem passada pelos realizadores de “Território Ocupado”) e do reconhecimento da comunidade (a partir da simbologia do rap para a sociedade em “Rap, o Canto da Ceilândia”).

Diferentes buscas para uma só conquista.


Ficha Técnica da Sessão

Brooklin (Coletivo CineLeblon, 22″ — 2019)
Em um futuro próximo, os moradores do Brooklin são submetidos a um toque de recolher imposto pela Guarda do Estado Verdadeiro. Através de uma rádio clandestina, criada por um grupo de jovens insurgentes, um espaço de denúncia se abre. À medida que a popularidade das transmissões aumenta, as retaliações por parte do Estado Verdadeiro começam. Uma caçada tem início. A ordem é derrubar os corpos que buscam se levantar.
Associação de Moradores do Guararape (Sergio Péo, 14″ — 1979)
Território Ocupado (Coletivo Cinema e Sal, 15″ — 2018)
Adolescentes da vila pesqueira Garapuá investigam a chegada de empreendimentos turísticos em sua comunidade, refletindo sobre a preservação do território e identidade. . O curta foi realizado coletivamente pelos jovens das oficinas “Cinema e Sal” , projeto de Cinema Comunitário e Educação Popular no arquipélago de Cairu-Bahia.
Rap, o Canto da Ceilândia (Adirley Queiroz, 15″ — 2005)
Dialogo com os artistas cantores de Rap, moradores da Ceilândia, cidade satélite de Brasília.

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Jorge Cruz Jr. é crítico de cinema associado à Abraccine e editor-chefe da plataforma Apostila de Cinema.

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