Sinopse: Em “Na Fila do Sus/Episódio 3” a Covid-19 chegou às favelas do Rio de Janeiro e encontra os serviços de saúde pública em colapso. Neste ano, a prefeitura demitiu cerca de 5 mil trabalhadores da saúde e o desmonte, promovido pelo prefeito Marcelo Crivella, preparou o cenário do caos. Na base do “Nós Por Nós” as favelas deram uma lição de solidariedade e auto gestão ao país.
Direção: Ellen Francisco
Título Original: Na Fila do SUS/Episódio 3 – Favela Nós por Nós (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 25 min
País: Brasil
Nada de Novo no Front Fluminense
Quando a pandemia de Covid-19 foi declarada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) um sinal de alerta se acendeu mais forte para os profissionais que atuam nas favelas do Rio de Janeiro. Reflexo de uma política de ausência de serviços essenciais, a falta de saneamento básico potencializaria os danos causados. Sem um sistema de água e esgoto minimamente eficiente, não há que se falar sequer em prevenção. Ou seja, o vírus chegaria ampliando a promoção do caos urbano, em um território que convive com crises das mais diversas frentes. Talvez, por isso, o terceiro episódio de “Na Fila do Sus” seja aquele menos influenciado pela reinvenção da própria obra a partir do coronavírus, mesmo que ele esteja muito presente.
As questões trazidas pelo episódio da websérie dirigida por Ellen Francisco, uma produção original Bombozilla, já fazia incontáveis vítimas. O viés era de alta desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 95, que fixou teto de gastos para a saúde e a educação. Questões que não geram nenhum tipo de mobilização da classe média, pelo menos aquela que ainda consegue oferecer escola particular para os filhos e tem empregos ou rendas que lhe garantam plano de saúde. O congelamento de investimentos sociais entraria em vigor e seria aplicado despudoradamente, mesmo que a sociedade civil se erga desde de 2017 – ano que a PEC foi aprovada – contra esse retrocesso.
No Rio de Janeiro, havia um agravante. A flagrante tática de inviabilizar as operações da CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro) para entregá-la à inciativa privada fez com que, desde o final do ano de 2019, a água chegasse na torneira de boa parte das casas da região do Grande Rio imprópria para consumo. Odor e coloração desagradáveis aumentaram o temor da população. Mais uma vez, quem tinha condições adquiriu água em depósitos de bebida e mercados, o que fez com que um bem vital fosse inflacionado. O verão carioca rigoroso deixava a realidade parecida com algum filme intermediário da franquia “Mad Max” (1979-2015). O Governo do Estado insistiu que a causa era uma alga chamada geosmina. Em junho de 2020 veio a confirmação do que todos suspeitavam: o que tinha na água era cocô mesmo.
Em “Na Fila do Sus/Episódio 3” há muito da essência que motivou a jovem equipe de realizadores independentes a levar adiante tal projeto. Um desmonte planejado da área de saúde em curso há quatro anos tem feito a país colocar em pauta discussões há muito superadas. Um exemplo é a internação compulsória de pacientes com transtorno mental, parte do desdobramento do racismo estrutural que se impõe nas relações e abordagens punitivistas pelo poder público. Vale o registro de que o episódio foi assistido no dia em que o jornal norte-americano Washington Post publicou em sua capa reportagem sobre a organização interna das favelas no combate à Covid-19 (veja aqui em português). Ou, se preferir, leia a reportagem original, em inglês, clicando aqui.
Mais do que isso, essa parte da obra de Ellen Francisco, que já se consolida como fundamental para entender o Brasil de 2020, nos apresenta uma sociedade onde não apenas os cuidados de higiene, mas o próprio isolamento recomendado, é impossível. O país em que o desejo de seguir a “vida normal” do próprio Presidente da República não gera discussão sobre ser um desejo ou uma ordem. É uma necessidade. Uma comunidade já habituada a se auto-organizar e que ainda recebe, quase como um deboche, os parabéns do responsável pelo Ministério da Saúde, pasta do governo que segue acéfala há mais de um mês, como se não fosse essa a grande preocupação no momento. É um pouco da materialização de todos os nossos temores em tempo de pandemia. Mal que afeta a todos, inclusive a avó de uma das produtoras da websérie, citada ao fim desse trecho.
Ainda há uma identificação do Rio de Janeiro como um espelho de um país em crise. Não somente por ser uma ex-capital do Brasil que nunca se resolveu com isso. A grande empresa da mídia hegemônica tem aqui a sua sede e aqui foi gestado o capital político daquele que está na cadeira mais importante do governo. Importantes núcleos de resistência aos desmontes também surgem pela federalização de muitas instituições, que nunca deixaram de ser um pouco do Distrito Federal. Por isso, talvez “Na Fila do Sus/Episódio 3” seja mais um clichê do que uma denúncia.