Sinopse: “Na Fila do Sus/Episódio 6” mostra como a exploração da força de trabalho através da tecnologia tem recrutado cada dia mais pessoas. Durante a pandemia, enquanto os aplicativos aumentam suas margem de lucros, trabalhadores e trabalhadoras se arriscam na iminência de contrair o vírus, enquanto driblam a fome no trânsito das cidades.
Direção: Ellen Francisco
Título Original: Na Fila do Sus/Episódio 6 – Uberização da Vida (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 15 min
País: Brasil
Quando o Estado não te Permite Acreditar
A websérie de Ellen Francisco, produzida em parceria com a plataforma Bombozila chega ao fim em “Na Fila do Sus/Episódio 6“. Uma conclusão que traz aquele que provavelmente é o maior reflexo da precarização do trabalho, iniciada quando os direitos sociais passaram a ser relativizados, depois vilipendiados, até que boa parte foram perdidos: o empreendedorismo da sobrevivência.
A uberização do trabalho é o assunto mais pungente da sociedade – e quem acreditava que a pandemia da Covid-19 acabaria por tirar o foco dessa relação de poder destruidora não deve ter ficado satisfeito. Profissionais de uma classe que tenta ser convencida de que não é uma classe. Nunca sofreram tanto – um sofrimento que ultrapassa o “mero” risco de contrair o coronavírus.
“Na Fila do Sus/Episódio 6” foi pensado como uma ponte entre todo o debate sobre o desaparelhamento da saúde pública dos episódios anteriores e questões que ultrapassam a análise direta do objeto da obra. Estamos cada vez mais doentes como pessoas e como sociedade. Em um governo que se preocupa com a morte de CNPJs (antes fossem aqueles representantes dos Micro Empreendedores Individuais), fatalmente o quadro que se apresenta aqui não sofrerá piora independente das circunstâncias. Até a força do vocábulo empreendedor ganha uma carga mais negativa cada vez que o falamos em voz alta.
Uma construção social que não surge com a metodologia Uber, aplicativo de transporte – replicada pelo de entrega de alimentos. Durante a pandemia, o iFood – mesmo com um aumento de 30% de sua receita – ampliou a porcentagem dos valores descontados dos estabelecimentos (que pode chegar a 35%) e dobrou a taxa de entrega. Por tabela, os entregadores passaram a ganhar menos. Esses, por sua vez, tiveram o direito ao auxílio emergencial negado quando uma lei de maio de 2020 visava incluí-los no benefício – mas foi vetada pelo Presidente da República. No próximo dia Primeiro de Julho há uma tentativa de mobilização da classe para paralisar os serviços em todo o país.
Se há algo na websérie que merecia uma busca mais profunda de sua origem, é justamente essa demonização dos direitos trabalhistas. Talvez gere um novo conjunto de documentários em curta-metragem tão informativos e necessários quanto esse compêndio eficaz que se revelou “Na Fila do Sus“. Vale lembrar que muitas áreas profissionais já praticam há algumas décadas uma busca selvagem por quem lhes contrate os serviços. As origens vão desde mercados de trabalho saturados, a perda de relevância de alguns ofícios ou até mesmo o barateamento dos custos de produção. Estamos falando de um leque gigante de trabalhadores. A própria advocacia há muito ignora as tabelas de honorários proposta pela Ordem de Advogados do Brasil (OAB). Procure lá e veja se você pagou o valor mínimo pelo seu divórcio ou se seu amigo de algum escritório recebe aquela quantia quando é contratado para uma audiência.
Há um efeito cascata nas relações laborais que cada vez mais esmaga a base da pirâmide. Temo que a uberização seja apenas a metade do caminho, se não for o início. Em um regime econômico que trabalha com “pretensões salariais” e pede para você “dar o seu preço”, é inescapável o caminho da miséria.
Todavia, essa não é a conclusão de “Na Fila do Sus/Episódio 6” – e se fosse já fecharia seu arco de maneira brilhante. Ellen Francisco nos lembra, em meio à avalanche de notícias que nos engole desde o início do isolamento social – que as operações policiais nas favelas cariocas seguem acontecendo. João Vitor na Cidade de Deus e João Pedro no Complexo do Alemão eram adolescentes que foram assassinados em suas ruas, em suas casas, junto aos seus – imotivadamente. Um país que programa seus agentes públicos para encarcerar e matar preto e pobre, para o qual falar de fila do SUS não faz tanto sentido – pois sequer o direito de acreditar em sistema universal de qualquer coisa lhe é respeitado.
A série se encerra com seis episódios. Se durasse um ano, teríamos 52 documentários sobre as mais diferentes formas de inexistência dos direitos sociais. Se durasse dez anos, teríamos 520 – e nunca acabaria. Ellen Francisco e o Bombozila trazem apenas um recorte, mas terminam por relembrar que o Brasil é uma tragédia em construção, sem pausa para descanso.