Sinopse: Em maio de 2019, importantes escritores e acadêmicos chineses se reuniram em um vilarejo na província de Shanxi, na China – que, por acaso, é a província natal do diretor Jia Zhangke. As imagens desse evento literário iniciam “Nadando Até o Mar Ficar Azul”, uma narrativa em 18 capítulos que abrange a história da sociedade chinesa desde 1949. Essa história é contada por meio das memórias do falecido escritor e ativista Ma Feng e dos testemunhos de três grandes escritores: Jia Pingwa, Yu Hua e Liang Hong, nascidos nas décadas de 1950, 1960 e 1970, respectivamente. Eles falam sobre a vida e suas carreiras literárias, transformando o filme em uma trajetória espiritual dos últimos 70 anos do povo chinês.
Direção: Jia Zhangke
Título Original: 一个村庄的文学 | Yi zhi you dao hai shui bian lan (2020)
Gênero: Documentário
Duração: 1h 51min
País: China
Vidas No Tabuleiro
Não fosse uma curta cena final, que compõe o décimo oitavo capítulo de “Nadando Até o Mar Ficar Azul“, o título do documentário apresentado por Jia Zhangke no Festival de Berlim e agora na seção Perspectiva Internacional da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo seria “Literatura de uma Aldeia” (é esse o nome que aquelas palavras no alfabeto chinês em nosso cabeçalho, literalmente, significam). Seria uma forma bem menos lúdica de chamar essa obra que se propõe e atravessar gerações de autores chineses e a relação com o momento pelo qual o país vivia quando de seus lançamentos de livros ou alguma fase específica de suas vidas.
Partindo de depoimentos que nos colocam na província de Shanxi e no passado em que o governo incentivou a agricultura familiar e o trato de águas salinas, o cineasta ouve a filha do escritor Ma Feng, falecido em 2004. Por ter sido ele filho temporão (e repetindo esse fenômeno com a entrevistada), estamos diante de um relato que antecede o estabelecimento do regime comunista no final da década de 1940. Zhangke irá compor o filme com longos depoimentos. Sem intervenção que o faça participar do corte do filme, ele deixa cada um fazer seu próprio caminho narrativo ao falar de seu passado e da relação com aquele território.
O resultado é a divisão de “Nadando Até o Mar Ficar Azul” em capítulos, de metragens bem diferentes entre si. A filha de Feng, por exemplo, faz um arco gigante sobre a vida estudantil do pai, sua aproximação da arte a partir das xilogravuras, até chegar na relação com a Revolução Cultural Chinesa. Quando é mencionado a obra clássica “O Sonho da Câmara Vermelha”, produção literária do final do século XVIII atribuída a Cao Xueqin, ficamos um pouco com a sensação de que o diretor quis, de certa maneira, fazer uma composição parecida. Não autobiográfica, mas isolando em pequenos fascículos o desenvolvimento da Literatura Chinesa das últimas décadas sob o aspecto da memória. Sem definir um tipo de memória.
Apesar de traçar na montagem paralelos de imagens, muitas contrastando a modernidade dos trens e aeroportos de última geração (que não são vistos por jovens vidrados em seus aparelhos de telefone celular) e o insistente ruralismo, o que encanta mesmo no documentário são as diferentes manifestações do desenvolvimento artístico e das leituras sobre o peso de sua arte entre os três autores: Jia Pingwa, Yu Hua e Liang Hong. O primeiro guarda uma relação com sua produção textual mais latente e a vincula na fase inicial ao acometimento de uma hepatite – admitindo, entretanto, que o interesse do Ocidente pelo mercado editorial do seu país contribuiu para um reconhecimento que talvez não tivesse se vivesse na época de Feng.
Já Yu Hua se entendia como um escritor em potencial pela capacidade de reimaginar histórias quando não gostava dos seus finais. A Odontologia foi uma escolha, porém não um obstáculo. Quando percebeu, passou a ter um editor e a ser publicado. Se há uma lição em “Nadando Até o Mar Ficar Azul” é que, quase, nenhum destino segue o caminho da lógica. Por vezes, nossos sonhos nem são entendidos como tal por nós mesmos. É uma visão poética sobre a obra de Zhangke e impressiona como essa possibilidade se formata em um apanhado de falas em edição aparentemente tradicional.
Um processo de criação de uma obra puramente documental passa pela potência do que será contado. Claro que o trabalho de um cineasta (ainda mais um mestre mundialmente reconhecido) faz com que a forma seja primordial. Mas, ter consciência e encontrar um material de alta carga amplia o resultado. Depois de tantas provocações acerca do destino, permeadas por pequenas histórias de pessoas menos ilustres daquele território, o filme nos leva a Liang Hong. Ela já não se volta tanto ao fazer artístico como consequência, não vê sua vida como um processo. Sua fala deixa claro que ela entende a existência como uma estrutura complexa, porém, autossuficiente. Escrever é mais uma ferramenta, uma engrenagem, uma terapia, um trabalho. Pode ser uma coisa ou tudo ao mesmo tempo.
Talvez por isso ela transforme a parte final de “Nadando Até o Mar Ficar Azul” em um conto sobre família e o que lhe aproxima nos capítulos menores volte ao mesmo provincianismo que abre o longa-metragem. Traça seus atributos a partir da biografia, como o derrame sofrido pela mãe com seis anos de idade, seguido de morte precoce. A relação com a irmã e o pai, que teve um novo relacionamento. Ela nos oferece minutos e mais minutos de leituras sobre o que a fez ser Liang Hong – chame de referências ou de influências. Porém, não parece ser o suficiente para darmos por esgotada a narrativa hipnótica que Jia Zhangke, em trabalho silencioso, constrói.
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